VIOLÊNCIA PERSISTE

Justiceiros expulsam estranhos em vilarejo marcado por violência de fazendeiros

Distrito cenário de execuções em série ocorridas 50 anos atrás hoje convive com ação de milícia e violência em disputa por terras

 

Estigmatizado por uma onda de assassinatos atribuídos a rixas entre antigos fazendeiros e, principalmente, pelo episódio das ossadas encontradas em duas cisternas de uma propriedade rural, 50 anos atrás, o distrito de Angueretá, em Curvelo, na região Central de Minas, ainda convive com a violência praticada por moradores. 

Um grupo formado por homens adultos age como justiceiros, chamados de “capas pretas”. Com capa e balaclava na cor preta, exibindo armas de fogo, abordam estranhos, forasteiros. Um deles faz questão de exibir a espingarda calibre .12 quando entra em ação com os demais integrantes do grupo, uma espécie de milícia. 

“Cê não é daqui, tá precisando de alguma coisa?”, é o que costuma perguntar ao encontrar alguém no vilarejo que julgam ser uma ameaça, conforme relatos de moradores, que em sua maioria apoiam a atitude. Se a pessoa não dá uma explicação convincente, recebe um ultimato para deixar o povoado imediatamente. 

Recentemente, uma família foi expulsa de casa, sob a suspeita de estar ali para iniciar o tráfico de crack. “Mas, hoje, o povo não mata, só bate, corrige”, ressalta um comerciante local. Ele elogia os acusados de envolvimento no caso das ossadas, alegando que quando estavam vivos o lugar não abrigava criminosos.

Porteira da propriedade onde, em outubro de 2023, quatro casas foram demolidas - Foto: Fred Magno/O TEMPO

Lavradores tiveram casas demolidas a mando de empresário

O que pouca gente comenta publicamente em Angueretá é outro recente episódio de violência que vitimou uma família inteira. Em 11 de outubro de 2023, quatro casas foram demolidas na área rural do distrito. Cinco pessoas moravam nos imóveis, todos parentes. Eram donas do terreno, que acabou tomado por um empresário da região.

Valdevir Gomes da Silva, 73 anos, que estava sozinho no local, quando quatro homens armados chegaram e o colocaram para fora de casa, foi obrigado a assistir à destruição dos imóveis, sentado no chão de terra. Só teve tempo de pegar alguns documentos. Em 30 minutos, tudo veio abaixo por meio da ação de tratores. 

Além de Valdevir, no terreno onde as casas foram demolidas moravam, havia duas décadas, as filhas dele, de 50, 54 e 56 anos, além da esposa, de 75. Todos perderam os móveis, eletrodomésticos e as roupas, soterrados. Com medo, foram morar em casas de parentes, em Sete Lagoas, a 55km de Angueretá.

O terreno onde estavam as casas fica perto do Km 6 da MG-420 [rodovia que liga Curvelo a Pompéu], às margens do Rio Paraopeba. Após a demolição das casas, Valdevir perdeu o apetite e entrou em depressão, segundo os parentes. Ele morreu em 30 de março de 2024, em Sete Lagoas.

Após abertura de inquérito, terreno permanece com empresário 

O mandante da demolição foi identificado no dia seguinte. O fazendeiro, que também é empresário e tem 57 anos, disse à polícia que era o dono do terreno, mas não mostrou documento algum. Já as vítimas apresentaram o título de domínio da propriedade, dado pelo governo de Minas Gerais em uma regularização fundiária.

O delegado Henrique César Faleiros, responsável pelo inquérito, garantiu estar provado que as vítimas são as verdadeiras donas da terra. Elas contaram que o empresário tentava comprar a área havia anos, mas, diante da recusa, decidiu agir por conta própria e se apoderar dela à força. 

A polícia não divulgou o nome do empresário. Mas sabe-se que ele é dono da Altivo Pedras. Sediada em Papagaios, cidade vizinha de Curvelo e Pompéu, ela surgiu em 1985. Conforme a Receita Federal e texto no site da empresa, a empresa atua em 14 ramos diferentes, incluindo marmoraria, agronegócio, e transporte rodoviário de carga. 

O site destaca ainda que a empresa vende “tampos de mesa em ardósia preta para um dos hotéis mais tradicionais do Rio de Janeiro” e forneceu as “telhas de ardósia utilizadas na mais recente reforma realizada no telhado do Palácio das Laranjeiras, residência oficial do governador do estado do Rio de Janeiro”.

“Em todos os seus empreendimentos, a Altivo Pedras atua de maneira socialmente responsável e destaca-se pelo desenvolvimento de projetos de alta tecnologia em harmonia com o meio ambiente, zelando não somente pela qualidade de seus produtos, mas também pelo atendimento a seus clientes, do relacionamento com seus funcionários, fornecedores e de tudo que realiza e participa”, exibe o site da empresa.

Aviso sobre homens armados e porteira trancada

Em julho, uma equipe de O TEMPO foi à propriedade cenário das demolições. Encontrou uma porteira fechada com correntes grossas e cadeados pesados. Ouviu de moradores de Angueretá que era perigoso circular pela área, pois haveria homens armados, encarregados de manter estranhos distantes. 

Desde então, a reportagem espera uma posição da Altivo Pedras. O jornal entrou em contato com a empresa com telefonemas a vários setores, informando a citação dela em conteúdo nas diferentes plataformas de O TEMPO. Também foram enviados e-mails.

Além da Polícia Civil, que não havia concluído o inquérito até a publicação deste conteúdo, o caso é acompanhado pelo Ministério Público estadual e pela Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de Minas Gerais.

Carvão e pasto acabaram com cerrado nativo, hoje ocupado por eucaliptos

Angueretá sempre dependeu da exploração dos seus recursos naturais, que levaram à destruição do cerrado nativo. No período da matança descoberta com a retirada de ossadas em uma fazenda, o carvão manteve a economia da região ativa.

A atividade enriqueceu poucos latifundiários, que mandavam derrubar as árvores do cerrado para transformá-las em combustível que abastecia as usinas siderúrgicas do centro de Minas Gerais, à custa da exploração da mão de obra barata.

À época, era branda a legislação sobre segurança no trabalho. Menor ainda era a fiscalização. O normal era as pessoas trabalharem nas carvoarias sem qualquer proteção, nem garantia de pagamento de um salário-mínimo.

Ardósia, eucaliptos e agrotóxicos alimentam economia e ameaçam moradores

As carvoarias alimentadas de forma arcaica começaram a perder força em Angueretá e região nos anos 1980, com a escassez de árvores e a mudança nas leis ambientais, que visavam diminuir os estragos provocados por toda a cadeia da siderurgia.

Fazendas de Curvelo e Pompéu aram a explorar em larga escala a ardósia, a pecuária de leite e corte – com o que restava de cerrado dando lugar a pastos – e o plantio de eucaliptos – para abastecer as siderúrgicas seguindo as novas normas, que impedem a derrubada de mata nativa para essa atividade. 

A indústria siderúrgica nas cidades ao redor de Belo Horizonte ainda é a principal consumidora do carvão vegetal produzido na Bacia do Rio São Francisco. A maior parte da produção sai de Buritizeiro, João Pinheiro, Pompéu, Curvelo e Corinto.

São corriqueiras denúncias de exploração de mão de obra na região, inclusive aquelas análogas à escravidão. Também há investigações sobre danos causados pela produção de carvão vegetal e eucalipto, com uso excessivo de agrotóxicos.

Animais outrora abundantes na região, como emas, jacarés e veados, praticamente desapareceram por causa do desmatamento e da aplicação de venenos na lavoura. Também são muitos os casos de contaminação de moradores.

Angueretá também foi vítima da barragem de Brumadinho

O rio Paraopeba, que margeia Angueretá, foi atingido pelos rejeitos tóxicos da barragem da Mina Córrego do Feijão, em Brumadinho, que pertence à Vale e se rompeu em 25 de janeiro de 2019, causando a morte de 272 pessoas. 

Cerca de 12 milhões de metros cúbicos de rejeitos percorreram mais de 300km, atingindo a Bacia do Paraopeba. O desastre causou impactos ambientais, sociais e econômicos a mais de 100 mil pessoas, incluindo moradores de comunidades na região da represa de Três Marias e do rio São Francisco. 

As regiões mais distantes afetadas pelo rompimento abrangem os municípios de Abaeté, Biquinhas, Curvelo, Felixlândia, Martinho Campos, Morada Nova de Minas, Paineiras, Pompéu, São Gonçalo do Abaeté e Três Marias.

Entre os afetados estão os herdeiros da Fazenda Porto Mesquita, a mesma onde há 50 anos foram descobertas as 19 ossadas em duas cisternas, no episódio que ficou conhecido como Chacina de Angueretá.

À época, a Porto Mesquita pertencia a Joaquim Cordeiro Machado, que, quatro anos antes, havia comprado a propriedade de um advogado, que, por sua vez, em 1970, a comprou de Zé Figueiredo, como era conhecido José Luís Figueiredo, apontado como um dos envolvidos na matança.

Hoje a fazenda é istrada por filhos de Joaquim Machado, que está com 92 anos e mora em Pompéu. Um dos que tocam a propriedade é Luiz Otávio de Castro Machado, 59. Ele ainda tenta reverter prejuízos com o rompimento da barragem em Brumadinho.

Apesar de estar à margem do Paraopeba, a fazenda é abastecida por caminhões-pipa enviados e pagos pela Vale. Luiz Otávio mantém uma criação de gado, mas deixou de plantar, porque contava com a irrigação por meio da água tirada do Paraopeba. 

“Também perdi a maior renda, que vinha de um pesque e pague, de onde tirava de R$ 15 mil a R$ 20 mil mensais”, lamenta o produtor rural. “É dura a luta com a Vale. Em qualquer tentativa de acordo de indenização, não há espaço para contraproposta”, diz.

Uma das poucas ruas de Angueretá: cerca de 400 pessoas moram no vilarejo - Foto: Fred Magno/O TEMPO

Turistas sumiram e moradores consomem peixes do rio poluído

Com o rompimento da barragem, Angueretá  também viu sumir os turistas, pescadores de várias cidades mineiras que avam dias em barcos nos rios Paraopeba e São Francisco e em ranchos nas margens deles.

Essa gente costumava se abastecer com bebidas e alimentos vendidos nas lojas instaladas nos dois lados do trecho da MG-420 que corta o vilarejo, onde também há um posto de combustível e restaurantes.

Mesmo com placas proibindo a pesca no Paraopeba desde o acidente em Brumadinho, moradores de Angueretá e Pompéu não abandonaram a pesca no rio. Eles am os fins de semana nas margens e dentro dele, em embarcações, à vista de todos. 

Angueretá elege um vereador após 40 anos 

Recentemente, o povo de Angueretá teve um motivo para festejar. Em outubro de 2024, após 40 anos, um morador do distrito foi eleito vereador de Curvelo. Gezinho Maciel (PSD), de 34 anos, é neto de Elmar de Oliveira Machado, o Sinhô Peixe, primo e um dos mais fiéis “jagunços” de Zé Figueiredo, segundo parentes de ambos.

Gezinho acredita que as histórias da chacina ficaram para trás. “Muita gente acha que Angueretá é um lugar ruim, mas não é. Aqui é terra de gente boa. Teve umas coisas ruins que aconteceram, mas isso ficou no ado. Agora é olhar para frente. E vou correr atrás para melhorar o lugar, como o abastecimento de água”, disse.

Sobre as acusações contra o avô, Gezinho preferiu falar do “respeito que os moradores tinham” por ele. “Meu avô ajudava muito as pessoas, levava quem precisava ao hospital, era um cara muito respeitado. Até hoje é.” Assim como o avô 50 anos atrás, Gezinho tem um mercadinho e restaurante à margem da rodovia que leva a Pompéu.

Herdeiros são donos de grandes propriedades

Angueretá é o mais antigo entre os cinco distritos de Curvelo. O povoado já existia quando Curvelo, em 1831, foi emancipado. Distante 60km da sede do município, o distrito tem cerca de 250 anos.

Atualmente, as terras de Angueretá são ocupadas por herdeiros dos antigos proprietários e antigos moradores desprovidos de terras ou com extensões de terra muito pequenas, herdeiros dos antigos colonos e agregados. 

No vilarejo, onde moram cerca de 400 pessoas, os sítios têm sido parcelados, dando lugar a pequenos lotes com casas sem acabamento – muitos barracos – nem esgoto, contando com poços artesianos.

As pequenas propriedades que ainda têm gado contam com poucas cabeças, de qualidade inferior. Há pequenas roças, onde geralmente são cultivados o milho, a cana e o feijão.

Confira também em vídeo o conteúdo sobre o mistério do "distrito das Almas":

Leia outras reportagens sobre a "Chacina de Angueretá" nos links abaixo:

O espaço permanece aberto para manifestações de instituições e familiares das pessoas citadas. Informações sobre os crimes em Angueretá podem ser enviadas para [email protected].