A BALSA

Briga envolvendo balsa originou rixa mortal entre fazendeiros que eram primos

Fazendeiros das mineiras Pompéu e Curvelo, que eram parentes, deram início a guerra armada após conflito envolvendo meio de transporte sobre o rio Paraopeba

 

Nos anos 1960, até a construção de uma ponte de concreto na MG-420, as mineiras Pompéu e Curvelo eram ligadas por uma balsa puxada por guindaste à manivela sobre o rio Paraopeba, no distrito de Angueretá. Serviço controlado por José Luís Figueiredo, dono da Fazenda Porto Mesquita, situada em uma das margens da travessia. 

Tal fazendeiro era mais conhecido como Zé Figueiredo. Ficavam na fazenda dele as duas cisternas que guardavam 19 crânios, retirados por bombeiros em 1975. Restos de vítimas de crimes em série iniciados após um desentendimento em torno da balsa, conforme investigação nunca concluída completamente.

Na outra margem do rio, em terras do município de Pompéu, ficava a fazenda de Gabriel Cazulo. Testemunhas relataram à polícia, durante investigação instaurada a partir do encontro das ossadas, que ele e Zé Figueiredo se tornaram inimigos após episódio envolvendo um caminhoneiro a serviço de Cazulo.

Há ao menos duas versões para o entrevero ocorrido em 1966. Uma, que o motorista chegou com uma carga de carvão querendo atravessar o rio depois das 18 horas, o limite para o transporte devido aos riscos com falta de luz. Ele foi impedido pelos trabalhadores da balsa. À noite, alguém cortou os cabos e pôs fogo na embarcação.

“O pompeano [cidadão de Pompéu] chegou com o caminhão carregado de carvão e queria atravessar de qualquer jeito. Não deixaram. Ele pegou quatro sacos de carvão, colocou na balsa e tacou fogo, mas a água do rio apagou. Acharam a balsa bem longe. Os jagunços do Zé Figueiredo juntaram e deram um tanto de tiro na fazenda do outro pompeano [o patrão do caminhoneiro]”, relata João Gonçalves de Oliveira, 83 anos.

Com 15 filhos, 26 netos e 10 bisnetos, João de Orlando, como é conhecido [por causa do pai, Orlando], mora em um sítio de Angueretá. Ele tem memória e físico bons o suficiente para plantar, colher, cozinhar e limpar a casa sozinho. A sua mulher, que morreu há 10 anos, era prima de Zé Figueiredo. 

João de Orlando trabalhou na travessia da balsa por seis anos. Ele lembra de uma batalha armada entre o ex-patrão e homens de Grabriel Cazulo, após o episódio com a embarcação, que foi levada de volta ao ponto de travessia, consertada. 

“O povo conta que, uns dias depois, o Zé Figueiredo tava com o filho e os jagunços num bar de Pompéu. Um cabo, parente do outro fazendeiro, tava na porta. Zé Figueiredo achou que ele tava lá para matar. Aí começou um tiroteio”, conta João. 

O “cabo” era um militar recém-saído do Exército, Lair Afonso dos Reis, o Lili Cachoeira, genro de Gabriel Cazulo e filho de Moacir Afonso dos Reis, primo de Zé Figueiredo. Baleado, Lili morreu seis horas depois, em 18 de julho de 1966. Testemunhas disseram que os tiros foram dados por Zé Figueiredo. A Polícia Civil confirmou.

Hoje dono de um sítio em Angueretá, João Gonçalves de Oliveira trabalhou na balsa que deu início à guerra entre primos - Foto: Fred Magno/O TEMPO

Tiroteio em bar e soco no meio da rua

Amigo de fazendeiros da região, tendo conhecido inclusive alguns dos investigados na Chacina de Angueretá, incluindo o dono da antiga balsa, o empresário Tadeu Machado, morador de Sete Lagoas, dá uma versão um pouco diferente para o incêndio da embarcação e a troca de tiros em Pompéu. 

“A balsa foi construída a pedido de Marcelo Cecé Vasconcelos de Oliveira, amigo de Zé Figueiredo e dono de uma carvoaria em Pompéu. Para levar o carvão para abastecer uma siderúrgica em Caeté, demorava um dia e meio. Com a balsa, a viagem diminuía em um dia. Em troca, cada caminhão de carvão pagava uma cota, com compromisso de entregar na mesma usina. Mas aí um não aceitou”, conta Tadeu Machado. 

“Um dia, o Moacir Cachoeira [Moacir Afonso dos Reis], atravessou o caminhão carregado de carvão e não pagou a cota. Ainda levou a carga para outra siderúrgica. Na volta, ele foi proibido de atravessar, mas o caminhão já estava imbricado na balsa. Chamaram um trator para puxar. Levou um dia. Outro dia, a balsa apareceu solta, descendo o rio por uns 15 quilômetros. Os fazendeiros da região juntaram os barcos de pesca para trazer essa balsa de volta. Isso levou oito dias”, relata Tadeu. 

O empresário diz que Zé Figueiredo culpou Moacir Cachoeira pelos danos à balsa. Ainda segundo Tadeu Machado, dias depois, Marcelo Cecé e Zé Figueiredo estavam em Sete Lagoas, quando o fazendeiro viu Moacir Cachoeira. “Cecé dirigia uma caminhonete. Ao ver o Moacir, o Zé desceu e deu um murro na boca dele.” 

Tiros em meio a uma procissão de Corpus Christi

Tempo depois, num dia de Corpus Christi, após participar de uma reunião em Pompéu para montar a cooperativa de leite da cidade, Zé Figueiredo e o filho foram almoçar num bar. “Alguém alertou que parentes do Moacir e do Cazulo esperavam o Zé pra matar ele, que saiu com o revólver, um .32, atirando”, conta Tadeu. 

Houve troca de tiros. Zé Figueiredo foi atingido na clavícula. Uma bala fatal acertou Lili Cachoeira. Figueiredo viu crescer sua fama de homem temido e ainda ficou livre. O promotor do caso aceitou a alegação de legítima defesa. A violência só aumentou. 

“No dia de Corpus Christi de 1967, durante uma procissão na rua onde o Zé morava, em Sete Lagoas, apareceu um homem e atirou na boca dele, na porta da casa. O atirador correu para a procissão. Os jagunços também correram e invadiram a igreja. O bispo não gostou. Reclamou com o Zé, que sobreviveu, de novo”, narra Tadeu.

“O Cazulo, que era suspeito de ser o mandante das tentativas de morte do Zé, foi preso e levado para cadeia de Sete Lagoas. Ficou alguns anos. Mas ele falava que isso não era problema, porque a cada ano que ava na cadeia o Zé Figueiredo ia gastar mais dinheiro com policiais e advogados para manter ele lá, além dos jagunços. Ia ficar pobre, o que acabou acontecendo”, completa Tadeu. 

Palavras endossadas por Aristeu Ribeiro de Almeida, 74 anos. Nascido em Angueretá, onde ainda mora, ele trabalhou cortando lenha para Zé Figueiredo. “Ele era ricão e ficou pobre. Ficou pobre porque pagou jagunço”, comentou com a equipe de O TEMPO, sentado em um banco de madeira na porta de casa. 

Zé Figueiredo morreu em 17 de agosto de 1991, em Sete Lagoas, com problemas de saúde agravados pelos tiros. Por meio de parentes, as filhas dele, que moram em Sete Lagoas, disseram que não queriam dar entrevista. 

Já Marcelo Cecé foi prefeito de Sete Lagoas de 1983 a 1988 e de 1997 a 2000, além de deputado estadual (1993-1996). O Ministério Público mineiro o acusou de liderar esquema com obras sem licitação e de outro, com desvio de remédios para distribuição em campanha eleitoral, quando era prefeito. 

Cecé foi condenado em 2008 por contratar advogado com verba pública para defender interesses particulares. Teve os direitos políticos suspensos. Morreu em janeiro de 2024, aos 88 anos, por insuficiência renal. Importante ressaltar que seu nome nunca foi vinculado por suspeitos, testemunhas ou investigadores à Chacina de Angueretá.

Caminhoneiro desapareceu após discussão na balsa 

Outra briga envolvendo a balsa da travessia entre Curvelo e Pompéu teria resultado em ao menos mais uma morte. Oficialmente, a vítima é dada como desaparecida desde 1967, quando a família fez o registro na delegacia de Sete Lagoas.

O caminhoneiro João de Souza Lobato foi visto com vida pela última vez em 24 de outubro daquele ano, à margem do rio Paraopeba, em uma confusão com homens que controlavam a travessia pela balsa de Zé Figueiredo, conforme testemunhas. 

João Lobato dirigia um caminhão carregado de carvão, mas foi barrado porque não tinha dinheiro para pagar a taxa. Teria havido uma discussão e troca de socos. Nunca mais se teve notícia do caminhoneiro. 

Casado e com seis filhos, João Lobato não tinha ficha criminal, mas havia sido levado para a cadeia de Sete Lagoas algumas vezes por se meter em brigas. Era alcoólatra. Foi internado no Hospital Raul Soares, em Belo Horizonte, para “tratamento nervoso”. 

Após a descoberta das ossadas na Fazenda Porto Mesquita, parentes de João Lobato receberam apenas informações extra oficiais de que seu destino poderia ser uma das cisternas de Angueretá. Teria sido morto por policiais militares ligados a Zé Figueiredo.

Confira também em vídeo o conteúdo sobre o mistério do "distrito das Almas":

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O espaço permanece aberto para manifestações de instituições e familiares das pessoas citadas.  Informações sobre os crimes em Angueretá podem ser enviadas para [email protected].