Precisamos olhar além da dor
Perceber o indivíduo e estar aberto a acolhê-lo
Qual o papel do médico na vida de um paciente? É absolutamente imprudente seguir na medicina sem fazer essa reflexão constantemente. Sem ela, a medicina pode se tornar um ato automático, uma resposta ao sintoma descrito pelo paciente, muito mais do que proporcionar uma verdadeira cura, ou promover um estilo de vida saudável e sustentável. A medicina a a ocupar um papel ivo. E, durante minha trajetória como médica, um dos meus maiores aprendizados é a necessidade de se envolver ativamente na vida daqueles que me procuram.
A maioria dos problemas apresentados a mim costuma ser fruto de longas histórias de vida, muitas vezes peradas por eventos traumáticos, mas não necessariamente.
Um dos casos mais emblemáticos que recebi em minha clínica foi o de uma mulher que apresentava fortes dores nos pés.
Os pés são estruturas muito complexas: não só possuem uma quantidade grande de pequenos ossos e cartilagens, mas também são responsáveis por carregar todo o nosso peso.
Sapatos desconfortáveis podem gerar problemas no longo prazo, e não podemos nos esquecer de priorizar a parte anatômica no momento de escolher o calçado.
No entanto, reflito muito sobre a função dos pés em nossas vidas e no simbolismo dessa parte de nosso corpo. Não só é nosso e, mas é aquilo que nos permite caminhar, nos mover tanto no mundo quanto na vida.
Após mais de dez procedimentos cirúrgicos, parafusos, osteomielites e várias outras complicações, essa paciente me procurou. A dor era tão intensa que ela não conseguia colocar os pés no chão.
Ela me procurou como último recurso e não estava confiante de que algo poderia ser feito. Estava acostumada com uma abordagem mais alopática e só aceitou consultar-se comigo por muita insistência da família.
A resistência do paciente sempre é um desafio, mas isso me motivou ainda mais a entender a história dessa mulher. De onde vinha essa dor e onde os tratamentos convencionais haviam falhado?
Em nossa longa conversa, ela me disse que seus pés começaram a doer depois de sua visita a uma penitenciária para ver a própria filha. Foi uma experiência traumatizante e, de acordo, com ela muito injusta.
Histórias de perdas de filhos e de parceiros também costumam se tornar dores nos pés. Essas dores nos mostram a necessidade de perceber o indivíduo que existe por trás da dor e de estar aberto a acolhê-lo com empatia e orientação.
O corpo é conectado. Não apenas o físico se comunica, mas o emocional influencia profundamente. Isso exige um compromisso do paciente, mas também uma capacidade de envolvimento do médico ou médica que o acolhe.
Precisamos estar prontos para olhar para dentro. Somos corpo, mas também somos história. (Instagram dra Meira Souza)