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Gabriel Azevedo

Professor, Mestre em Cidades e Doutorando em Direito

GABRIEL AZEVEDO

Duas cidades, seis fluxos, um desafio comum

BH x Singapura: infraestrutura e natureza como aliadas

Por Gabriel Azevedo
Publicado em 23 de maio de 2025 | 07:00

Toda cidade é movida por fluxos. Alguns são invisíveis, outros visíveis. Alguns artificiais, outros naturais. No contexto urbano, muitos fluxos sustentam a vida cotidiana – do deslocamento de pessoas à transmissão de dados, ando por relações econômicas, jurídicas e culturais. 

Neste texto – vinculado às reflexões do meu doutorado em direito ambiental – concentro-me em seis fluxos materiais fundamentais para a sustentabilidade de qualquer cidade: água, energia, alimentos, esgoto, lixo e combustíveis.

Belo Horizonte lida com esses fluxos de forma fragmentada e externalizada. Singapura, por sua vez, trata-os como sistemas vitais, interdependentes e regenerativos. A comparação revela um abismo de abordagem, todavia também aponta caminhos para a transição de nossa cidade rumo à resiliência.

Água e energia

Belo Horizonte consome cerca de 8.000 L de água por segundo. Mais de 95% vêm de fora: Nova Lima, Brumadinho e Juatuba. A cidade não reaproveita esgoto nem armazena chuva em escala. Singapura, em contraste, criou quatro “torneiras”: chuva, reúso potável (NEWater), dessalinização e importação. Lá, chuva é solução; aqui, ainda é problema.

Nossa matriz elétrica é majoritariamente limpa – 92% de fontes renováveis –, contudo seguimos dependentes de energia gerada fora dos limites urbanos. A geração solar local é de apenas 117 MW, menos de 5% do consumo total. Singapura, embora ainda dependa de gás natural importado (95% da matriz), avança na diversificação, na eletrificação e nas importações renováveis.

Alimentação e resíduos

Singapura importa cerca de 90% dos alimentos que consome, mas quer produzir 30% internamente até 2030, com fazendas verticais, aquicultura urbana e telhados comestíveis. Belo Horizonte recebe alimentos do interior de Minas Gerais e de outras unidades da Federação. A Ceasa movimenta 1,4 milhão de toneladas ao ano, e o Brasil assegura fartura. Contudo, planta-se pouco na cidade. Singapura cultiva alface em painéis. Nós poderíamos cultivar em telhados.

Belo Horizonte coleta esgoto de 93% da população e trata 77%. O efluente é lançado nos rios, sem reúso. Singapura trata 100% do esgoto e converte até 40% em água potável via NEWater. Lá, o esgoto vira insumo. Aqui, continua a escorrer para fora.

Geramos 2.000 toneladas de lixo por dia e enviamos quase tudo ao aterro de Sabará. Reciclamos apenas 1,1%. Não compostamos em escala nem aproveitamos a energia da biomassa. Singapura incinera quase todo o lixo, gera eletricidade, reduz o volume em 90% e aterra apenas as cinzas. Em 2023, reciclou 52% de tudo o que produziu.

Combustível e caminhos

Nosso combustível vem da refinaria de Betim. A frota leve utiliza etanol em 45% – um diferencial positivo. Ainda assim, usamos gasolina e diesel. Singapura importa tudo, mas já decidiu que, a partir de 2030, não permitirá mais a venda de veículos a combustão.

Belo Horizonte consome o que não produz, enterra o que não trata, descarta o que não reaproveita. Os fluxos que sustentam a cidade operam de forma linear, externa e opaca.

Singapura escolheu outro caminho. Mesmo sem recursos naturais abundantes, apostou em tecnologia, integração e planejamento de longo prazo. Transformou limitação em virtude e hoje exporta soluções para o mundo.

O urbanista Timothy Beatley, possível referência teórica no meu doutorado, propõe o conceito de cidade biofílica: aquela que aprende com a natureza, regenera seus fluxos e oferece aos cidadãos uma conexão ecológica cotidiana. Para ele, natureza e infraestrutura não são opostas, e sim aliadas – ideia que ajudou a implementar em Singapura, referência global no tema.

Organizar os fluxos

Belo Horizonte não precisa replicar Singapura – sobretudo no que diz respeito ao regime de governo nada democrático. Contudo, precisa reconhecer que seus fluxos compõem um metabolismo urbano que deve ser reorganizado, relocalizado e regenerado.

ou da hora de captar a chuva, não canalizá-la. De plantar comida na cidade. De gerar energia nos telhados. De transformar esgoto em recurso. De compostar, reciclar, eletrificar. De fazer dos fluxos um sistema vivo, e não apenas um encanamento para longe dos olhos.

Esse futuro não exige mais invenção. Exige intenção. E pode começar assim que a cidade decidir se reconectar com aquilo que a sustenta.