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Gabriel Azevedo

Professor, Mestre em Cidades e Doutorando em Direito

GABRIEL AZEVEDO

O papa das cidades

Francisco e sua relação com as questões urbanas vivas

Por Gabriel Azevedo
Publicado em 25 de abril de 2025 | 08:35

Quando a fumaça branca se ergueu em 2013, não foi apenas o primeiro jesuíta ou o primeiro latino-americano que emergiu como papa. Francisco assumiu o trono de Pedro com um gesto silencioso que viria a ecoar em bairros esquecidos e periferias empobrecidas: escolheu seu nome não em homenagem a um rei, mas a um mendicante. E ali começava o mais urbano dos pontificados.

Francisco nunca escondeu seu olhar para as cidades. Para ele, o cimento das metrópoles não era obstáculo à espiritualidade, mas expressão de um mundo que clama por justiça. O papa não falava apenas para os cardeais em Roma: falava para o catador de recicláveis da avenida do Contorno, para a mãe solo no Borel, para o jovem migrante africano espremido no metrô de Paris. Seu evangelho não era de cúpula, era de esquina.

Nas encíclicas “Laudato Si’” e “Fratelli Tutti”, Francisco elevou a cidade à categoria teológica. Apontou a favelização do mundo não como destino, mas como denúncia: “A falta de moradia é uma vergonha global”, disse. Condenou a urbanização que expulsa os pobres para longe do que é vivo, chamando à conversão os que fazem da exclusão um modo de ordenamento urbano. Para ele, terra, teto e trabalho não são bandeiras partidárias – são direitos sagrados.

Foi o papa dos três “Ts”. E o mundo entendeu. Ao visitar a comunidade de Kangemi, em Nairóbi (Quênia), não ofereceu fórmulas prontas, mas reconhecimento: “Os pobres têm sabedoria”. Em vez de paternalismo, partilha. Em vez de urbanismo de cima para baixo, escuta. Francisco via nos becos e vielas a possibilidade de um urbanismo mais humano, mais fraterno, mais verdadeiro.

Também foi o papa da mobilidade. Alertou contra a lógica do automóvel que isola e polui. Defendeu transporte público digno, não por nostalgia peronista ou socialista, mas por senso de justiça: quem a três horas por dia num ônibus superlotado está sendo roubado do seu tempo de viver. E o tempo, para Francisco, é dom divino.

Na sua crítica ao modelo tecnocrático, denunciou o “mito do progresso” que destrói comunidades, consome energia não renovável e transforma bairros em desertos afetivos. Em contrapartida, propôs o que chamou de “ecologia do cotidiano”: calçadas seguras, praças de encontro, moradias integradas – a vida como ela deve ser.

Francisco entendia o mundo como um corpo e a cidade como seu rosto mais nítido. Onde há violência urbana há violência estrutural. Onde há especulação imobiliária há idolatria do dinheiro. Onde há segregação há pecado social. E, para cada uma dessas feridas, ele oferecia uma pastoral da cidade: não de igrejas monumentais, como tanto gostam alguns, mas de presença nas periferias. Registro uma de suas frases: “Melhor ser ateu do que católico hipócrita”. E mazelas urbanas atrelam-se à hipocrisia cristã.

Ao convocar prefeitos do mundo para o Vaticano em 2015, o papa não ofereceu indulgências, mas responsabilidade. Disse que os desafios do século XXI seriam vencidos das bordas para o centro. Defendeu que as cidades tinham papel decisivo na luta contra o colapso climático e a desigualdade global. Não era uma tese acadêmica. Era um chamado profético.

Francisco não verá as cidades do futuro que tanto defendeu. Contudo, deixou o esboço de um projeto radical: cidades que acolham, não expulsem. Que integrem, não isolem. Que cuidem das pessoas como se cuida da casa comum. No seu magistério, urbanismo e espiritualidade se tocam – como se fossem uma mesma praça iluminada.

Em 2013, ouvi dele na Jornada Mundial da Juventude, no Rio de Janeiro: “Tenho confiança em vocês em irem contra a corrente. Também tenham a coragem de ser felizes”.
Se existe santidade nos tempos modernos, talvez ela esteja menos nas igrejas e mais nas calçadas. E ali, entre buzinas e becos, Francisco plantou sua semente. Agora, a nós cabe regá-la.