Vale mais viver
Uma obra-prima do cinema alemão
O tanto que gosto de cinema – digo cinema mesmo, telona – é proporcional à preguiça de assentar-me diante da TV para ver filmes. Porém, fugindo daqueles canibais insaciáveis que mastigam pipoca, sugam refrigerantes, almoçam, jantam, conversam e ainda conferem mensagens no celular a cada minuto, adaptei-me às sessões domésticas no sofá – uma por dia, jamais uma “maratona”, variante do pecado da gula que consiste em se empanturrar de filmes e, ao final, não saborear nenhum.
Outra preguiça vem da baixa qualidade do que rola nos canais de streaming. Sobram antigos sucessos que ninguém aguenta rever, além do pacote repulsivo de séries violentas ou sobre traficantes famosos, contrabando de drogas, milionários da droga, assassinos da droga, chefões, chefinhos e chefonas. Tem droga demais por aí. Sem falar na enxurrada de produções “domadas”, dentro dos preceitos do politicamente correto, contendo obrigatoriamente aqueles personagens de minorias que a gente logo identifica.
No meio de tanta porcaria às vezes encontramos algo especial. Agora, foi uma produção alemã de 2018, no Prime Vídeo, cujo título em português virou “Nunca deixe de Lembrar”. Acompanhando outras asneiras nas traduções dos títulos, erraram de novo. Mais fiel seria “Nunca deixe de Olhar” (“Never look Away”, original em inglês) frase citada pelos atores ao longo das 3 horas que dura o filme. Sim, prepare a pipoca, são 3 horas; 188 minutos de uma história extasiante com fotografia maravilhosa e desempenho primoroso do elenco.
Filmes devem ser assistidos, comentá-los é meio inútil. Mas segue um resumo: ado entre 1936 e 1966, ele narra a trajetória de Kurt Barnert, jovem idealista e pintor talentoso. Quando criança, ele sofreu os terrores do nazismo e os bombardeios aliados que arrasaram Dresden, sua cidade. Já rapaz, penou sob o jugo comunista da Alemanha Oriental. Submetido ao massacre diário da propaganda e da vigilância opressora, o artista dentro dele felizmente resistiu às lavagens cerebrais de ambos os regimes autoritários. A massificação da opinião pública, a insistência das mentiras ideológicas e a violência contra quem delas discorda são métodos tradicionais das tiranias. Muito disso acontece hoje no Brasil e mundo afora.
Legal também é a reconstituição criativa do ambiente das décadas adas, como a manchete de jornal sobre um certo muro erigido em Berlim. Ou um garoto usando um ório revolucionário da moda - calças jeans; a fartura de aparelhos de TV à venda nas lojas; a liberdade de ir e vir – novidades que atraem a atenção de Kurt e de sua namorada Ellie. Se você viveu esses anos vai curtir lembranças daquele período; da explosão do rock-and-roll, da vanguarda da pop-art – momentos degustados pela juventude enquanto o mundo temia virar poeira com os mísseis de Nikita Kruschev em Cuba.
De posse desse rico e farto conteúdo dramático, o diretor Florian von Donnersmarck (Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 2006 - “A Vida dos Outros”) poderia fazer de sua obra um dramalhão comercial ao gosto do grande público ou mais um panfleto politizado na linha da inável “arte engajada”. Mas, não: manteve-se coerente com o que parece ser sua crença do papel da arte e da importância dela para a humanidade.
Kurt Barnert, o sofrido protagonista do filme, só encontra a inspiração, a paz e até o sucesso quando pinta quadros afinados com sua própria história, sua jornada dolorosa e seus sentimentos legítimos. Com desfecho surpreendente, “Nunca deixe de Lembrar” a o recado daquilo que nunca devemos nos esquecer: mesmo na banalidade do nosso quotidiano - às vezes sem-graça, sem brilhos, aventuras, romances ou efeitos especiais - a vida real continua sendo muito mais importante do que a arte.