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Fabrício Carpinejar

Poeta escreve às sextas no Magazine e no Portal O Tempo

OPINIÃO

Não mexa nos cabelos de sua esposa

O olhar de censura dela para que eu afaste meus tentáculos de Wolverine já me dá calafrios

Por Fabrício Carpinejar
Publicado em 28 de março de 2025 | 03:00

Minha esposa ama carinhos. 

Quando eu deslizo a mão em seu rosto, como se estivesse escrevendo seu nome com tinta invisível. 

Ou quando simulo um rolinho, com os dedos fechados, em seus braços. 

Ou quando massageio seus ombros. 

Ou quando tiro seus sapatos e fricciono seus pés. 

Só não a que eu mexa em seus cabelos. Nenhuma mulher gosta. Pode até itir exceção, fingir contentamento, tolerar por um tempo, em especial no início do romance, durante a greve de personalidade da paixão. 

Cabelo e umbigo são territórios sagrados. Não se entra neles sem autorização. 

Eu já nem ouso enfiar as unhas nas raízes da cabeça de Beatriz. Entendi que não sou bem-vindo. Ela nunca me disse, mas nem é necessário. No momento que o faço, vira sempre o pescoço de modo abrupto, como uma pomba arrulhando, e me indaga mentalmente: “O que está querendo? Me bagunçar ou me sujar? Qual dos dois propósitos?”. 

O olhar de censura dela para que eu afaste meus tentáculos de Wolverine já me dá calafrios. 

O afago desagradável é evidente: ou estragarei seu penteado, ou besuntarei seus fios recém-lavados. 

Trata-se de um mal-estar cultivado nas famílias, em que as principais vítimas são as crianças. Mania dos adultos de ar por um sobrinho ou sobrinha e revolver seus cabelos. Não é engraçado, não é um gesto protetor, não é um cuidado. 

A impressão é que estão se limpando, que o couro cabeludo infantil é uma espécie de pia de um banheiro. 

Mesmo que não seja um cascudo ou uma carraspana, representa uma agressão psicológica. É uma atitude invasiva, de pouco caso com a aparência alheia. 

Nada mais íntimo e pessoal do que os cabelos. É pelo seu corte e seu tratamento que cada um insinua sua personalidade, seu jeito de ser. A partir dessa moldura, chega-se à tela do temperamento: se a pessoa é tímida ou expansiva, confiante ou recatada, comunicativa ou de palavras exatas. 

Nunca se sabe o quanto o outro demorou na frente do espelho. 

Raciocine comigo. Qual o sentido de seu par gastar litros de xampu e condicionador caros, permanecer uma hora debaixo do chuveiro em intervalos rigorosos para os produtos fazerem efeito, usar o secador e a chapinha por mais algumas horas, para que você destrua a obra de arte em alguns segundos? 

Isso, quando não fica uma manhã ou uma tarde inteira no salão embelezando suas mechas e recebe de presente grego, ao voltar para casa, jamais um elogio ou a constatação da mudança, mas garras imundas. 

Além de não descobrir o que foi feito de diferente, você desmancha a exaustiva produção com pretensos cafunés. 

Não tem cabimento. Afora o desperdício financeiro e de atenção, o comportamento demonstra um fundo afrontoso de desvalorização da presença. 

Ainda não se atingiu a essência da intimidade. Nem tudo o que não é falado é permitido.