Palavras matam sonhos
Em contrapartida, se uma mulher sai com um homem e ele confessa que sabe cozinhar, ela se mostra absolutamente surpresa
Você quer ver como o machismo estrutural não é invenção? Não é forçação ideológica?
Se um homem sai para um encontro romântico com uma mulher e ela diz que não sabe cozinhar, ele se espanta:
— Nada? Nem um ovo? Nem um miojo?
Ele a constrange com perguntas que mais parecem um interrogatório. Não acha natural. Supõe que está faltando uma habilidade essencial na formação dela.
Em contrapartida, se uma mulher sai com um homem e ele confessa que sabe cozinhar, ela se mostra absolutamente surpresa. Ele vira uma raridade. Um milagre. Um super-homem prendado.
Há papéis que continuam vivos no inconsciente coletivo — e que alimentam preconceitos invisíveis.
Para a mulher, cozinhar ainda é dever. Para o homem, é um espetáculo, uma exceção gloriosa.
Só que isso pouco importa. Já existe delivery. Já existe iFood.
Quando conheci Beatriz, nem levei tal insignificância em consideração. Não empenhei nenhum inventário de qualidades do lar. Eu a amava do jeito que ela era, com suas inteirezas e aptidões. Não podemos estabelecer pré-requisitos como esses, retirados do cardápio dos velhos costumes. Tampouco ela me indagou se eu lavava ou ava roupa.
Mas a desigualdade costuma agir historicamente na qualificação do status, muito além da vida doméstica.
Mulheres são parteiras, homens são obstetras.
Mulheres são professoras, homens são pedagogos.
Mulheres são atendentes, homens são consultores.
Mulheres são vendedoras, homens são empresários.
Mulheres são dançarinas, homens são coreógrafos.
Mulheres são costureiras, homens são estilistas.
Mulheres são cozinheiras, homens são chefs.
A titulação muda conforme o gênero. E a situação financeira acompanha, apesar das atividades em comum.
Ser chef, por exemplo, é obter o holofote do palco, desfrutar de uma reputação de criatividade e de prestígio, conferida à atuação em restaurantes de alta gastronomia. Já o posto de cozinheira é frequentemente associado ao trabalho auxiliar dos bastidores.
Essa diferenciação linguística perpetua estereótipos e contribui para a subvalorização feminina.
No Brasil, as mulheres recebem, em média, 20,9% a menos do que os homens para exercer as mesmas funções. Essa disparidade é ainda mais acentuada em cargos de liderança e para mulheres com nível superior, chegando ao índice de 30% — dados do 3º Relatório de Transparência Salarial e Igualdade Salarial, divulgado em abril de 2025 pelos Ministérios do Trabalho e Emprego e das Mulheres.
Na área dos restaurantes, o tratamento é discrepante. As mulheres representam 54% da mão de obra formal — de acordo com pesquisa do IBGE/Abrasel de 2024 —, porém apenas 10% ocupam os cargos de chefia em restaurantes renomados, e somente 7% são chamadas de chefs.
Em Minas Gerais, as mulheres ganham 24,88% a menos do que os seus colegas de dólmã — segundo a pesquisa “Juntas na Mesa”, realizada em 2023 pela Abrasel em parceria com o movimento as do Brasil.
E ainda sofrem assédio moral e sexual — quase 40% das entrevistadas relataram casos no ambiente de trabalho —, credibilidade ameaçada — 35% concordaram que tiveram sua capacidade de cozinhar questionada — e mais dificuldade de o a recursos e financiamentos — um terço delas acredita que empreender na gastronomia custa mais caro para elas.
Cuide na hora de falar para não reproduzir estruturas de dominação.
Palavras matam sonhos.