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Fabrício Carpinejar

Poeta escreve às sextas no Magazine e no Portal O Tempo

OPINIÃO

O antídoto das histórias de terror

'A respiração se prendia ao limite, numa asma do coração – uma falta de ar de tanto esperar'

Por Fabrício Carpinejar
Publicado em 25 de abril de 2025 | 03:00

Na época em que partilhávamos histórias de terror, havia muito menos terror na realidade. Funcionava como um antídoto para errar menos na vida.

Era assim de noite, em madrugadas de tempestade, quando o bairro ficava sem luz. Ou quando a família se isolava num sítio, de preferência numa casa de madeira, com o piso rangendo e barulhos estranhos da mata ao redor.

Se o vento batesse as janelas, melhor. Se os copos deslizassem pela mesa, melhor. A natureza encomendava os efeitos especiais.

Todos se acotovelavam no sofá para sentir medo. Juntinhos. Apertados. Numa proximidade propícia ao refrigério do abraço ou ao choque do susto. 

Existia o hábito saudável de se lembrar de fantasmas, de miragens sobrenaturais, de vultos na estrada que pediam ajuda e desapareciam de repente na neblina, de lobisomens, de mulas sem cabeça, de padres endiabrados, de meninas e meninos enterrados vivos, de procissões em que andarilhos levitavam – tudo com sotaque e suspiro.

A respiração se prendia ao limite, numa asma do coração – uma falta de ar de tanto esperar.

Os contadores fingiam ser testemunhas das ocorrências, avam a impressão de que tinham visto com os próprios olhos, escutado com os próprios ouvidos, já se antecipando a qualquer incredulidade.  

O repertório se repetia, mas jamais a plateia corajosa perdia o interesse. A vontade imperiosa se resumia a rever os mesmos personagens e sofrer com o suspense das assombrações prediletas.

Como a Loira de Diamantina, que surgia de branco na janela das tradicionais casas coloniais. Moça morta por desgosto, ela aparecia sorrindo: sem um único dente.

Sobejavam episódios de almas desenganadas, abandonadas no altar, com o véu e a grinalda escurecidos pelo rímel das lágrimas, tal a Noiva do Casarão de Sabará. Enlouquecida, trancou-se no quarto para nunca mais. Dizem que, até hoje, nas madrugadas chuvosas, ela se põe a tocar, no piano, a “Marcha Nupcial”. A música ecoa de algum sobrado misterioso e incógnito no fundo da cidade.

Das imersões cardíacas, também faziam parte menções às metamorfoses, como a do Lobisomem do Mato do Fundão e a da Porca dos Sete Leitões. No primeiro causo, no interior do Jequitinhonha, o sétimo filho homem se convertia em lobisomem e procurava abrigo entre os porcos – uivando no badalar da meia-noite da capela. No segundo, uma porca gigante, acompanhada de sete leitõezinhos, saía em noites de sexta-feira e vagava pelas ruas atrás de pecadores. Tratava-se de uma mulher amaldiçoada por ter se negado a ajudar um moribundo durante longo estertor. 

Só valiam fatos inexplicáveis, iníveis para a razão. Entre eles, a vela de Congonhas que não se apagava, mantendo-se acesa diante de um anjo na Basílica do Senhor Bom Jesus de Matosinhos. Nem jogando água ela morria. Quando um fiel a soprou por curiosidade, a chama virou serpente e sumiu na parede. Ou a Fofoqueira de São Thomé das Letras, sobre a qual recaiu um feitiço que a converteu numa rocha. Por falar demais dos outros, sua boca permanece eternamente aberta no formato de uma gruta, soltando sussurros lancinantes e inaudíveis. Ou o Menino do Sino, de Mariana. Como não ter pesadelos depois da narração daquele coroinha que caiu do alto da igreja ao brincar no campanário e que retorna para mexer no rabo do sino, reprisando o exato instante de sua queda?

Para finalizar a noite horripilante, alguém sempre dizia que teve os pés puxados pelo Corpo Seco, um zumbi do interior de Minas, meio pele, meio esqueleto, espírito de um cabra tão ruim que nem Deus, nem o demo quiseram. Foi enterrado, porém a terra o cuspiu de volta. Para se vingar, apanha as pernas de quem toma um caminho desconhecido na roça.

As sessões produziam um efeito apaziguador, corretivo e curativo. Geravam lições de moral, incentivando bons comportamentos e endireitando pensamentos inclinados às tentações. Dentro do pavor, encontrava-se o ímpeto da autoproteção.

Espécie de exorcismo coletivo, as reuniões improvisadas com tios e primos serviam para cada um se arrepender dos seus pecados. 

Os calafrios nos salvavam.

Hoje o inferno vem mudando de endereço, das fábulas para a crueldade do cotidiano. O noticiário supera a ficção.