HISTÓRIA

Quilombo a 50 km da Esplanada dos Ministérios conserva costumes centenários de escravizados

Comunidade nascida há quase 280 anos e que reúne mais de 400 famílias é conhecida pela produção de marmelada artesanal

Por Renato Alves
Publicado em 21 de abril de 2025 | 07:10

BRASÍLIA – A cerca de 50 quilômetros do centro do poder nacional, na divisa entre o Distrito Federal (DF) e Goiás, integrantes da quinta geração de remanescentes quilombolas lutam para manter vivos costumes centenários de escravizados que trabalhavam em fazendas da região.

Com quase 280 anos, o Quilombo Mesquita hoje abriga cerca de 800 famílias em pequenas propriedades rurais que estão em terras da Cidade Ocidental, município goiano da região metropolitana do DF. Outras 435 famílias quilombolas do Mesquita moram em diferentes cidades goianas vizinhas de Brasília.

O Quilombo Mesquita surgiu da doação de terras do fazendeiro José Correia de Mesquita a três negras escravizadas, conforme testemunho oral registrado pela Fundação Palmares e pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).

O primeiro registro de terra do Mesquita ocorreu em 1746. Mas o reconhecimento como quilombo ocorreu apenas em 2006, quando a Palmares concluiu os estudos antropológicos para delimitar a região. 

O que hoje é o município da Cidade Ocidental pertencia à Santa Luzia – atual Luziânia (GO) – onde viviam, em meados de 1760, cerca de 13 mil negros escravizados e 3,5 mil pessoas livres que formavam a elite local.

Quando as pioneiras do quilombo ganharam a liberdade, a região enfrentava a decadência do curto ciclo de ouro em Goiás, iniciado no século 17 e encerrado no século 18 – por isso a mão-de-obra escravizada era dispensável. 

As mulheres beneficiadas pela doação de Mesquita formaram famílias e mantiveram as tradições do plantio e costumes da cultura negra. Elas também abrigaram negros escravizados que fugiam de outras fazendas da região.

O grupo foi crescendo, sustentado por plantios de milho, feijão, cana, mandioca, hortaliças, entre outras culturas, além da criação de porcos, galinhas e gado. 

Aos 71 anos, Hamilton da Cunha Couto, que nasceu e sempre morou no Mesquita, cultiva muitos os hábitos dos ancestrais. “Eu planto milho, mandioca, danço catira, participo da folia [de Reis]” ressalta.

Com 100 anos, Angelina Beneditina Pereira também segue ativa. Ela ajuda os filhos a fazer a própria farinha, por exemplo. “Aqui em casa sou eu que cozinho. E tudo eu faço com as coisas que a gente planta”, ressalta a descendente de escravizados.

Marmelada é uma das principais fontes de renda

Há pouco mais de 100 anos, os residentes do Mesquita aram a fazer marmelada artesanal. A cultura do marmelo, fruto trazido pelos portugueses durante a colonização e que encontrou clima favorável em terras brasileiras, se destacou no Mesquita ao ponto de se tornar uma das principais fontes de renda das famílias. 

Ao menos 10 propriedades do Mesquita fabricam a marmelada. Sinval Pereira Braga, 70 anos, vende aos vizinhos os frutos colhidos anualmente nos 200 pés de marmelo que mantém nos fundos de seu sítio. “A gente colhe uns 400 quilos da fruta por ano. Isso dá pra fazer uns 1.200 caixinhas de marmelada”, conta. 

Há mais de 20 anos, em todo janeiro, logo após a colheita do fruto do marmeleiro, a comunidade do Mesquita se une em torno da  Festa do Marmelo. Ela surgiu a partir do desejo da comunidade, devota de Nossa Senhora da Abadia, de construir uma igreja maior, pois a capela já não comportava mais o número de habitantes. 

O objetivo foi alcançado há alguns anos, mas a festa segue viva. Além de cavalgadas e muita música, ela tem como atrativos o marmelo de seus derivados, como licor de marmelo, sopa de marmelo com queijo e, claro, a marmelada. Recentemente, o marmelo foi incorporado à merenda escolar, por ser rico em fibras e com baixa caloria.

Os moradores do Mesquita fazem questão de contar que Juscelino Kubitschek (1902-1976), o presidente do país quando Brasília foi construída e inaugurada, em 21 de abril de 1960, era um dos principais compradores de doces do quilombo. 

JK se manteve como fiel cliente mesmo após ser proibido pela ditadura (1964-1985) de entrar em Brasília – teve os direitos políticos cassados, perdendo o mandato de senador. Ele morou em uma fazenda de Luziânia, perto do Quilombo Mesquita.