'PAI’ DO IMPEACHMENT

Reale Jr. diz que ‘derrocada do PT seria maior’ sem impeachment de Dilma

Em resposta aos aliados da ex-presidente, o jurista diz que ‘golpe é atribuir caráter de golpe a um instrumento natural do processo político presidencialista'

Por Lucyenne Landim
Publicado em 31 de agosto de 2024 | 07:00

BRASÍLIA - Em 31 de agosto de 2016, o jurista Miguel Reale Júnior viu a então presidente Dilma Rousseff (PT) ser destituída do cargo a partir de um processo de impeachment encabeçado por ele. Exatos oito anos depois, marcados neste sábado (31), ele reafirma que são incontestáveis os crimes atribuídos à petista e diz que “golpe é dizer que foi golpe, é atribuir caráter de golpe a um instrumento natural do processo político presidencialista”.

Reale assinou a denúncia junto aos juristas Hélio Bicudo e Janaína Paschoal. Foram apontadas duas ilegalidades para a sustentação do julgamento. Uma delas foi o cometimento de crime de responsabilidade pela abertura de mais de R$ 18,4 bilhões em créditos suplementares, nos anos de 2014 e 2015, sem a autorização do Congresso Nacional. O segundo, a prática de “pedaladas fiscais”, que é o atraso no ree de recursos a bancos públicos para o pagamento, por exemplo, de benefícios. 

Na avaliação do autor, “a derrocada do PT seria maior ainda” se não houvesse o impeachment “porque a deblace [ruína] financeira ia ser maior”. “O PIB [Produto Interno Bruto] brasileiro caiu mais de 7% em 2014 e 2015, com um processo inflacionário, com alto desemprego e penúria. Foi o processo recessivo mais grave que o país viveu”, declarou.  

Ex-ministro da Justiça do governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB) por um breve período, entre abril de julho de 2022, Miguel Reale também redigiu a denúncia contra os ex-presidentes Fernando Collor, destituído em 1992, e Jair Bolsonaro (PL), a quem chama de “um desastre total, uma infelicidade que caiu sobre o nosso país”.    

O jurista não vê a eleição de Bolsonaro como consequência do impeachment, mas sim o “fracasso” do governo de Michel Temer (MDB), com o encolhimento de partidos de centro, e o episódio da facada na campanha eleitoral de 2018. No pleito de 2022, Reale chegou a declarar apoio ao então candidato Luiz Inácio Lula da Silva, do PT, o mesmo partido da presidente que pediu a queda. “Imagina se nós tivéssemos um novo mandato de Bolsonaro?”, justificou sobre a decisão. 

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Confira abaixo a entrevista com Miguel Reale Júnior, autor do pedido de impeachment de Dilma Rousseff, em entrevista a O TEMPO Brasília: 

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PERGUNTA: O mandato da ex-presidente já tinha enfrentado as manifestações de 2013, o que gerou uma grande pressão sobre o governo. O que motivou o pedido de impeachment?

RESPOSTA: O processo de impeachment foi fruto de um descalabro do governo Dilma Rousseff. Primeiro, pela corrupção que se instalou no país, especialmente na Petrobras. Lembrando que a presidente Dilma Rousseff tinha sido ministra de Minas e Energia, presidente do Conselho de istração da Petrobras, e fazia declarações de que a contabilidade da Petrobras era excepcional, era mundialmente famosa pela sua correção. E nós vimos que a corrupção tinha lavrado durante seu mandato na Petrobras, não apenas quando ministra, mas depois continuou durante o exercício do seu primeiro mandato como presidente da República. 

O segundo fato, que eu acho que é o mais grave, que era o descalabro financeiro, a debacle que houve no país, as contas falsas, a contabilidade criadora, um desrespeito à responsabilidade fiscal que levaram à maior crise que o país já viveu, à maior recessão que o país já viveu.  

O PIB [Produto Interno Bruto] brasileiro caiu mais de 7% em 2014 e 2015, com um processo inflacionário, com alto desemprego e penúria. Foi a maior recessão que o país já viveu, levando vários brasileiros à miséria, com decréscimo de renda, uma involução muito grave decorrente exatamente daquilo que se chama de pedaladas. 

As pedaladas não se constituíram em uma formalidade, foram um disfarce que se fez para ocultar dos agentes financeiros a situação de debacle, de quebra do equilíbrio fiscal. E quando foi descoberto isso, quando caem alguns dos fundamentos da economia, cria-se a imensa desconfiança do mercado e paralisa-se a atividade econômica, como aconteceu.  

Esse foi o fato muito grave. Inclusive, a Ordem dos Advogados do Brasil [OAB], logo depois do nosso, também entrou com um pedido de impeachment e eu até propunha que nós saíssemos e atribuíssemos à OAB a titularidade da ação para tocar o processo de impeachment.  

Esse argumento fiscal chegou a ser questionado pelos aliados de Dilma. Na avaliação do senhor, essa denúncia da política fiscal do governo Dilma era um argumento incontestável? Aliados dela ainda usam a palavra golpe para descrever o processo.  

Sim, e inclusive está na lei do impeachment os crimes de responsabilidade fiscal. Não existe golpe nenhum. Golpe existe naqueles que estão pretendendo ver [golpe] em um processo legítimo, com ampla defesa, ela apresentou 40 testemunhas, foi todo um processo longo de contraditório e votado pela Câmara dos Deputados e pelo Senado que não tem nada de golpe.

É evidente que o PT vai sempre dizer que foi um golpe. Golpe é dizer que foi golpe, é atribuir caráter de golpe a um instrumento natural do processo político presidencialista, que é o impeachment, como foi o do [ex-presidente Fernando] Collor. E ao mesmo tempo, o PT diz que o impeachment é golpe, mas entrou com mais de 40 pedidos contra o presidente Fernando Henrique Cardoso, em suma. 

Mas infelizmente não era golpe, era um fato tristíssimo que levou à debacle do país, com graves consequências para a população, especialmente dos mais pobres, não só para o governo como instituição.  

A parte do senhor era a jurídica, mas qualquer processo de impeachment se mistura muito com a parte política, que foi o que aconteceu em 2016. O senhor avalia como natural essa narrativa política ao longo do julgamento? 

É natural, porque é um processo de julgamento por um órgão político. A Câmara dos Deputados analisa antes a issibilidade da acusação, mas o órgão julgador é o Senado, que se transforma efetivamente em um tribunal. E lá se desenrola um processo com acusação, defesa, provas documentais e periciais. É um processo, mas que tem como órgão julgador um órgão político.  

Eu participei e escrevi grande parte do processo de impeachment do Collor, e depois com [o ex-presidente Jair Bolsonaro], eu fui chamado pelo próprio Senado, pela I [Comissão Parlamentar de Inquérito] da Pandemia, para presidir uma comissão que fez um parecer e depois apresentou um pedido de impeachment do presidente Bolsonaro.  

Aliás, creio que os fatos que levaram ao pedido de impeachment de Bolsonaro eram até muito mais graves dos que os envolveram a Dilma. Os fatos que envolveram a Dilma eram graves pelas suas consequências na vida cotidiana, no dia a dia dos brasileiros. Mas o que o Bolsonaro fez de prejuízos à saúde pública e a responsabilidade pelo número de mortes, se deve, sem dúvida nenhuma, à desídia do presidente Bolsonaro. Isso está estampado no pedido de impeachment que eu formulei e foi enviado à Câmara dos Deputados, mas não teve seguimento.  

Então, a meu ver, é um processo que vai logicamente sempre ter um aspecto político. No caso da Dilma, o então deputado Cunha demorou para dar seguimento e retirou do pedido de impeachment todos os fatos relacionados à corrupção, porque eram fatos que tinham ocorrido no mandato anterior. 

Acontece que o Supremo Tribunal Federal [STF] já tinha decidido que fatos ocorridos no mandato anterior podem ser objetos também de impeachment. Mas o Cunha não quis estabelecer responsabilidade aos fatos anteriores porque ele tinha fatos anteriores ao mandato dele como deputado que ele não queria que houvesse a apreciação. 

E se viu que ele tinha, tanto que ele veio a ser processado, veio a ser posto fora na Câmara dos Deputados e condenado.  

A Dilma tinha não só as questões relacionadas à responsabilidade fiscal, que eram muito graves, mas também à desídia, ou seja, ela deixou de tomar cuidados que lhe eram imputáveis, que eram necessários que ela tomasse, para evitar que a corrupção lavrasse em órgãos que ela conhecia tão bem, como a Eletrobrás e a Petrobras.   

Pedido de impeachment é uma medida extrema na política do país. Desde a redemocratização, foram dois casos, o de Fernando Collor em 1992 e o de Dilma Rousseff. Desde o processo em 2016, o Brasil tomou um rumo político que deu espaço a uma polarização e uma nova direita que estava adormecida. O senhor avalia que essa polarização é uma consequência do impeachment? 

Não houve a determinação do impeachment como causa do Bolsonaro, vamos deixar bem claro isso. Inclusive, eu fui contra o Bolsonaro sempre. Eu estive em antagonismo com o Bolsonaro no próprio pedido de impeachment, minha primeira manifestação no Senado foi em solidariedade às famílias contra o voto que o Bolsonaro fez na Câmara dizendo que fazia em homenagem ao coronel Ustra [acusado de sequestro e tortura na ditadura militar]. E eu fui presidente da Comissão de Mortos e Desaparecidos do regime político. Portanto, foi sob a minha presidência que o colegiado acolheu os pedidos de responsabilidade com relação àqueles que foram mortos pela ditadura, a começar pelo [Carlos] Lamarca e [Carlos] Marighella. Portanto, eu tive manifestação sempre contrária ao Bolsonaro. 

Então, são dois fatos. Primeiro, o governo Michel Temer acaba por fracassar porque esteve envolvido em corrupção. Isso fez com que houvesse um refluxo do apoio a uma linha central que podia ser o sucesso do governo Temer. No campo financeiro, o governo Temer foi positivo, mas no campo da sua imagem, foi muito negativo, tanto que houve processo criminal e ele quase pensou em renunciar. Ali se inviabilizou uma política de centro.  

Outra coisa foi a facada. Se não fosse a facada, o Bolsonaro não teria sido eleito. A facada o vitimizou e o impossibilitou, em seu benefício, de ir a debates e participar do processo eleitoral. Ficou como mito, mito, mito. Eu sempre fui contra o Bolsonaro, escrevi 46 artigos ao longo do seu mandato, inclusive reunidos em um livro de denúncia chamado “Bolsonárias”, que culmina no pedido de impeachment pelos atos praticados durante a pandemia. 

Então, existiu sem dúvida nenhuma essa polarização. O que é ruim é que a linha de centro, que tinha sido sempre prevalecente no país, o PMDB, o PSDB, o PDT, se enfraqueceu significativamente, perdurando a linha do PT. Eu não vou dizer que o PT seja de esquerda. O PT é de centro-esquerda, os governos Lula, não é porque pensam na igualdade que pode-se dizer que sejam de esquerda. Então ficou o PT de um lado e o bolsonarismo de outro, e o centro foi engolido.  

Ou seja, não foi o impeachment que provocou isso. Primeiro foi o desmando do PT, a corrupção do PT que levou bilhões de reais para fora, bilhões de dólares de propina, que é uma forma de ditadura, a ditadura da propina que caracterizou o Mensalão e o Petrolão. E, logicamente, o enfraquecimento do centro.  

E, sem dúvida nenhuma, não é só de 2013, há um descontentamento com a política, com o discurso da política, e especialmente a política mobilizada pelas redes sociais, que foi o instrumento do Bolsonaro. As redes sociais permitem que exista uma exploração política das emoções, dos ressentimentos, das frustrações. Todas as frustrações convergiram em favor do Bolsonaro.  

Mas não foi o impeachment. Se o impeachment não tivesse ocorrido, teria sido até pior, porque a deblace financeira ia ser maior. O governo Temer segurou a queda do processo financeiro do país com o ajuste fiscal com o [Henrique] Meirelles no Ministério da Fazenda. Então se não tivesse havido o impeachment da Dilma, a derrocada do PT seria maior ainda, o governo teria levado o país a uma debacle maior ainda, a um desastre mais profundo de fome, de desemprego, de desalento nesse país.    

Então a gente pode entender que o resultado de 2022, quando o PT voltou ao poder, poderia ter sido diferente?  

Na verdade, foi o PT que elegeu Bolsonaro, e foi Bolsonaro que elegeu o PT.  

Ainda sobre 2022, o senhor deixou muito clara uma posição contra Bolsonaro e declarou apoio ao candidato Luiz Inácio Lula da Silva, do PT, depois de desistir de uma terceira via. O que levou o senhor a esse apoio? 

Foi o receio... Imagina se nós tivéssemos um novo mandato de Bolsonaro? Ele já fez o que fez no primeiro mandato e quando perdeu as eleições, imagine agora se nós estivéssemos aí sob o comando dele em um segundo mandato, em que ele se sentiria livre para querer construir no país uma espécie de monarquia. Então teríamos aí Bolsonaro 2, com Eduardo Bolsonaro presidente da República. Que desastre. 

Por conta desse apoio, o senhor chegou a ter algum tipo de contato com algum quadro do PT, com Lula ou com Dilma? 

Não, nenhum tipo de contato com ninguém. Apenas manifestações pessoais, particulares, de algum membro do PT em face desse meu apoio. Logicamente, apoio as medidas que entendo que sejam positivas praticadas pelo governo Lula da Silva.