OITO ANOS DO IMPEACHMENT

De ‘barrados no Planalto’ à 'confissão da derrota’: bastidores do impeachment de Dilma por Cardozo

O advogado e amigo pessoal de Dilma conta, em entrevista a O TEMPO Brasília, como conduziu o processo que destituiu a então presidente da República

Por Lucyenne Landim
Publicado em 31 de agosto de 2024 | 07:00

BRASÍLIA - A ex-presidente Dilma Rousseff (PT) ou nove meses como alvo de um processo de impeachment no Congresso Nacional que, ainda hoje, denuncia ter sido um “golpe”. As alegações oficiais foram irregularidades fiscais em seu governo, mas o grupo político que a cercava alegou que a petista foi retirada do cargo por uma crise política - o que, dizem, viola a Constituição Federal. 

Seu advogado no processo – e amigo pessoal - foi José Eduardo Cardozo, ex-ministro da Justiça que deixou o cargo com a escalada do embate político. Na primeira fase do impeachment, ele a defendeu como advogado-geral da União. Na fase de julgamento no Senado, Cardozo já estava fora da carreira pública e ou a defender Dilma como advogado pessoal.  

A partir daí, foram “noites não dormidas” e uma relação de extrema proximidade. Ainda, segundo ele, a criação de estratégias para ar à sociedade a imagem de um processo ilegítimo. Do lado de Dilma, o impeachment contou com momentos de restrição, como a proibição de buscar pertences pessoais no Palácio do Planalto, sede istrativa do governo, e o corte de alimentos e energia no Palácio da Alvorada, a residência oficial, conforme relatado por Cardozo. 

Houve, ainda, pessimismo e o choro da “confissão de derrota”. Segundo o advogado, Dilma enfrentou sua destituição com uma característica de “frieza” que costuma adotar em situações graves. Em seu julgamento no Senado, chegou a dar risadas do amigo, que caiu no choro depois de defendê-la. Exatos oito anos depois de deixar a Presidência - em 31 de agosto de 2016 – Cardozo avalia que a história do país redimiu Dilma. 

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Confira abaixo a entrevista com José Eduardo Cardozo, advogado de Dilma Rousseff no processo de impeachment, em entrevista a O TEMPO Brasília: 

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PERGUNTA: Como foi para Dilma e para o senhor saber que o pedido de impeachment tinha sido aceito?  

RESPOSTA: Eu tinha uma avaliação um pouco mais pessimista do que a maior parte do governo, e talvez até do que de Dilma. Quando o processo deu um o, que foi aprovação na comissão da Câmara que havia sido criada pelo Eduardo Cunha, sabendo que estava havendo uma somatória entre o grupo que havia perdido a eleição em 2014, comandado por Aécio Neves, e o grupo de Eduardo Cunha, eu tinha certeza de que seria aprovado na Câmara. 

Obviamente, você não entrega os pontos, você luta até o final. O governo buscou o possível para tentar evitar a aprovação na Câmara, mas a junção desses dois grupos acabou determinando um conjunto de defecções ou até traições, vou dizer assim, que determinaram o resultado na Câmara. A partir daí, eu acho que poucos de nós trabalhávamos com a hipótese de que não haveria impeachment, por menos fundamento que tivesse o pedido - não havia crime de responsabilidade, evidentemente.  

Eu me lembro de uma discussão que foi feita em um petit comitê no Palácio da Alvorada, ou no Planalto, não lembro, em que surgiu a hipótese 'será que nós devemos manter a defesa no processo de impeachment? Não seria melhor não ter um advogado e nomear um dativo, porque nós não estaremos mantendo um advogado legitimando um processo de impeachment e não perdendo oportunidade de denunciar que aquilo é um golpe que é uma fraude?'.

Eu me lembro de uma palestra na PUC de São Paulo em que um aluno perguntou para um advogado de presos políticos se ele não se sentiu um pateta ao defender presos políticos, porque ele já sabia que a pessoa ia ser condenada. Ele deu uma resposta que me veio à mente: ‘Muitas vezes, você como advogado está em uma situação que sabe que o jogo já está jogado, mas os teus gritos têm que ser ouvidos fora da sala de audiência para que as pessoas que estão fora percebam que ali está se cometendo uma injustiça’. 

E no final Dilma falou: ‘Não, nós não vamos persistir, nós temos que mostrar para a sociedade que isto é um golpe, que isto é uma farsa e que não há crime de responsabilidade’. Porque as pessoas não entendiam exatamente o que estava acontecendo. E aí a nossa missão era não só defender tecnicamente a presidente, mas ao mesmo tempo mostrar a incongruência, o absurdo, o ridículo daquelas acusações que eram dirigidas contra ela.   

O senhor acredita que foi possível demonstrar isso? 

Eu acho que sim. Quando na fala final os acusadores falam que ela não estava sendo afastada por causa dos crimes, mas pelo conjunto da obra, estavam confessando que não houve crime nenhum. O governo havia perdido a sua maioria parlamentar. No presidencialismo, ao contrário do parlamentarismo, perder a maioria parlamentar não significa perda do mandato presidencial. As regras do jogo não foram jogadas como a Constituição prescrevia. 

Para a sociedade também? 

Eu acho que sim. Quando o processo começou, eu fui algumas vezes vaiado em restaurante, as pessoas me xingavam de corrupto, de defender uma corrupta. À medida em que o tempo ava, muitas pessoas diziam: 'Você é um bom advogado, eu acho que Dilma tem que sair, mas é difícil rebater você'. Eu comecei a sentir uma mudança de clima. 

E depois do processo de impeachment, eu acho que ficou muito evidenciado que [...] havia uma tentativa de afastar uma presidente da República que havia sido legitimamente eleita, porque o candidato que setores da elite brasileira queriam não foi eleito, que era Aécio Neves. No dia seguinte ao resultado das eleições, eles pediram recontagem de votos. Não tinham nada para demonstrar, começaram a procurar um fato para impeachment. 

Foi um processo não a partir de fatos, mas era uma decisão que procurava fatos, e criaram fatos muito ruins para que efetivamente pudesse haver uma justificação juridicamente aceitável. 

 

Ainda que Aécio Neves não fosse ocupar o cargo de presidente com o impeachment? 

Aécio e [Eduardo] Cunha, junto com [Michel] Temer, foram os principais articuladores do impeachment. Isso é inegável, claro. Eles dialogaram, eles construíram, e o governo Dilma - e aí há que se discutir se não for um erro - pensando que havia uma divisão no PMDB, porque no primeiro momento Michel tinha um litígio com Eduardo Cunha, entregou a articulação política para o comando do PMDB vinculado a Michel, particularmente ao então ministro já falecido Eliseu Padilha.

A partir de um certo momento a máquina da articulação política do governo ou a ser utilizada contra Dilma Rousseff. E quando Dilma e nós nos demos conta disso, aí já era tarde demais, estávamos em um momento muito delicado. Havia uma pressão midiática muito forte. Tínhamos na Lava Jato um juiz arbitrário, que era Sergio Moro, um grupo do Ministério Público arbitrário que selecionava investigações e criava situações absurdas, como a divulgação que Sergio Moro fez ilegalmente de um áudio entre Dilma e Lula que foi totalmente distorcido, segmentado. 

Estavam cada vez mais somando situações para que o impeachment fosse construído e chegou ao resultado. Só que quem ofende a democracia, parece que tem uma praguinha, sofre por isso. Todos que articularam o golpe, todos os principais cabeças, saíram bem destruídos desse processo. Vamos lá: Aécio Neves não preciso falar; do lado Cunha, não preciso falar; Temer foi presidente, mas saiu como o presidente mais mal avaliado da história e se fosse disputar uma eleição hoje para deputado federal, não sei se elegeria. 

Qual seria o objetivo desse grupo, então? 

No fundo, eu acho que havia uma intenção de retomada do projeto neoliberal no Brasil que havia sido derrotado nas urnas. 

O senhor sabe como foi, internamente, a quebra na relação entre Dilma e Temer? 

Eu acho que foi um processo não visível. Que Dilma e Michel fossem próximos, não me parece que algum dia tenham sido. Mas tinham relações de diálogo. [...] Eu comecei a ver alguns gestos que mostravam que algo estranho estava acontecendo. Setores do PMDB começaram a nos procurar dizendo ‘olha, o Michel e seus aliados estão traindo vocês’. Isso nos deixou muito surpresos.

Logo depois disso, aconteceu aquela célebre carta que Michel mandou. Eu estava com Dilma no momento em que ela recebeu a carta. A minha leitura eu falei para ela na hora: ‘Isso tem uma declaração de guerra do vice-presidente, ele está rompendo com a senhora e obviamente ele vai entrar agora em uma articulação ostensiva; se antes era subterrânea, agora é ostensiva para o processo de impeachment’. 

O senhor lidou diretamente com Dilma. Foram muitas noites mal dormidas? 

Esse processo de impeachment demorou muitos meses e particularmente na fase do Senado, a oposição queria, a toque de caixa, acabar com o processo. Então eram sessões diárias de 12, 13, 14, horas. Era muito exaustivo, de virar a noite eu não diria mal dormidas, mas não dormidas. Dilma, por sua vez, sempre mostrou algo muito impressionante. Durante todo o processo de impeachment, e relativamente às questões do impeachment, ela sempre foi muito firme, ouvia, e serena. Dilma tem essa característica. Nas questões muito graves, ela assume o comando e age com absoluta frieza, como agiu no processo de impeachment. 

Me lembro de um fato muito marcante. Quando eu fiz o discurso final no Senado, eu estava exausto, eu tinha uma hora e meia para falar. Quando eu terminei, eu já sabia do resultado, óbvio - todo mundo sabia - eu falei acabou. E quando eu desço eu vou me encontrar com os senadores do PT e do PCdoB, eles estavam chorando. Eu fui com eles, abracei, e falei 'agora eu posso me soltar'. E comecei a chorar. Eu sou muito controlado, muito. Mas se eu solto a minha emoção, não há Cristo que represe.  

E na hora que eu estava lá, alguém me fala ‘Cardozo, coletiva’. Eu tinha me esquecido que eu tinha que dar uma coletiva à imprensa a quase 300 jornalistas nacionais e estrangeiros. Primeiro, como é que eu vou chegar na coletiva chorando? Nenhum problema de chorar, o problema é que é advogado não chora antes do resultado. Aquele meu choro era a confissão da derrota, e eu não podia assumir que nós tínhamos perdido. A sorte foi que tinha tanta gente para chegar até onde ia ser coletiva no Senado, e eu tive tempo de pensar o porquê que eu estava chorando, porque eu sabia que a primeira pergunta seria ‘Você está chorando por quê? Você sabe que perdeu?’. 

Então aí eu tive tempo de pensar na resposta e falei: ‘Eu estou chorando porque eu não perdi minha capacidade de me indignar diante da injustiça’. Termina isso, eu saio, toca o telefone, era Dilma Rousseff. Atendo: ‘Oi, chefe, tudo bem?’. ‘Ô Cardozo, o que é essa choradeira tua aí?’. Ela ria e dizia ‘Você é fingido, fez um teatro aí, você deve ter pego um cigarro e apagado na mão para poder chorar para sentir dor, porque você não é assim, não’. Era a maneira que ela tinha de dizer ‘fique firme’. 

Isso no julgamento no Senado? 

No Senado. Quando você está cansado, coisas que não te abalariam normalmente, você fica abalado. Eu fiquei muito irritado com uma fala que a acusação fez, da doutora Janaína Paschoal, em que ela começa a chorar na tribuna e fala que está fazendo aquilo pelo bem do Brasil e pelos bens do neto de Dilma Rousseff. Aquilo me deixou com uma irritação... Nesse momento, o presidente [da sessão, Ricardo] Lewandowski me chama, eu vou à tribuna e eu estava com aquilo na cabeça. Eu falei 'eu preciso dar uma resposta não pela força da contundente de argumento, mas para me acalmar’. 

Então eu começo o discurso e no meio eu encontro a resposta. Eu digo o seguinte: até mesmo na ditadura, os torturadores tinham um momento de compaixão em que eles falavam 'menina, estamos fazendo isso para o bem do país, dos seus filhos, dos seus netos’. Por mais violência que fizessem, eles encontravam meio de dizer que estavam com a razão para tentar se auto justificar. Quando eu respondo isso, eu retomo o plano normal. Aquilo não foi estratégia, mas se eu não me acalmasse, meus demônios internos não permitiriam que eu continuasse o discurso de forma concentrada. 

Como foi, para vocês, a saída de Dilma do Palácio do Planalto depois que ela foi afastada? 

Foi impressionante. Ela é notificada, ela desce, uma confusão. Todos os ministros estavam deixando os cargos, porque Michel ia assumir. E houve um fato que as pessoas não sabem. Todos nós havíamos deixado as nossas coisas, a minha mala de trabalho, computador... Nós descemos com a companheira Dilma, estávamos na sala da presidenta. Quando eu volto, dizem: 'o senhor não pode mais entrar'. Peraí, minhas coisas. 'Vocês não podem mais pisar no Planalto, ordem superior'. Aí deu uma confusão danada, no fim conseguimos pegar as coisas, mas não deixavam a gente voltar.  

Antes disso, já tinham problemas muito sérios, e nesse ponto honras sejam feitas ao senador Renan Calheiros [então presidente do Senado], porque tinham cortado tudo do Palácio da Alvorada. Dilma era presidente, ela só não estava em exercício, então ela tinha que ficar na residência oficial. Cortavam comida, cortavam luz, foi um horror. Aí eu me lembro de ter ido falar com o presidente Renan de que não ia aceitar isso. Renan foi quem conseguiu, naquele momento, restaurar um mínimo de situação no Palácio da Alvorada para que permanecesse habitável. 

Depois desse processo, a gente teve uma mudança muito brusca da política brasileira, com o ressurgimento de uma direita que estava adormecida e uma polarização muito grande, com basicamente dois lados da política. O senhor acredita que esse processo de impeachment fez nascer esse novo modelo político que impera hoje no Brasil? 

Os fenômenos políticos têm várias causas. O impeachment de Dilma Rousseff foi determinado por várias causas que concorrem: a crise econômica com um pano de crise internacional; a vitória de Eduardo Cunha na Presidência da Câmara com todas as consequências que isso tinha; a derrota apertada de Aécio Neves, que tinha dado um gosto de vitória para os setores neoliberais; as manifestações de 2013; e possivelmente fatores internacionais, com a opção que nós tínhamos feito pelo petróleo, para que o petróleo não é tivesse os seus os seus ganhos no Brasil. Há todo um conjunto de situações que mostram isso.  

Esse conjunto de situações que determinam o impeachment faz com que o impeachment seja uma das causas determinantes, somada a várias outras, que explicam a política brasileira a partir daí. Você vai ver o Judiciário encontrando situações de um ativismo exacerbado ou sofrendo ataques exacerbados, às vezes até injustos. Você vai ver um Legislativo em situações absolutamente curiosas. Você vai ver um Executivo manietado e um crescimento do desgaste da institucionalidade.  

[...] 

Essa descrença da democracia tem a ver com o mundo. A extrema-direita surge no mundo a meu ver tendo como uma das causas o descrédito na democracia representativa. Esta situação do impeachment, mais os outros fatores todos, geraram o que nós tivemos no Brasil que é a eleição de Jair Bolsonaro e a situação que ainda hoje persiste de intolerância, de radicalização, de defesa da arma como forma de violência ao invés da racionalidade. 

Como ficou e como está a Dilma oito anos depois? 

Esta situação toda que ela viveu no impeachment, eu diria que Dilma nunca caiu como pessoa, ela foi derrubada por um golpe como presidente, mas como pessoa saiu de pé andando e permaneceu. Então quando hoje o clima se altera, quando o Lula ganha a presidência da República, mostrando ao país que muito daquilo que havia sido feito tinha a ver mais com oportunismo do que com institucionalidade efetiva, eu acho que ela mesmo foi redimida.