Sebastião Salgado entre a crítica e o ativismo
Ícone da fotografia mundial consolidou biografia tão influente quanto as próprias imagens que produziu
Cyro Almeida é fotógrafo, produtor cultural e mestre em comunicação social.
Eu não seria fotógrafo sem a existência prévia de Sebastião Salgado. Lembro-me que a primeira vez em que ouvi falar do mestre foi por volta de 2007 em uma aula da professora Maria Luiza Magalhães Nogueira na Universidade Federal de Minas Gerais. Não era uma aula de fotografia, mas de psicologia do trabalho. Isso reflete o impacto que suas obras alcançaram, escapando do metiê da fotografia, da arte ou do jornalismo, difundindo-se no debate público e sendo absorvidas por várias esferas do saber.
Estudando a relação entre trabalho e subjetividade, eu e meus colegas – futuros psicólogos – fomos apresentados à série Trabalhadores, realizada por Salgado na virada da década de 80 para os anos 90. Mais do que isso, conhecemos a biografia do próprio fotógrafo, que abandonou a carreira de economista e percorreu o mundo fotografando as populações mais vulneráveis. Recordo-me do espanto, da euforia e inquietação ao me perguntar: Essa profissão existe? Sair pelo mundo fotografando de forma independente?
O que não pode ser imaginado não pode ser desejado.
Naquele momento eu nunca sonhara em ser fotógrafo e tampouco foi esse o meu despertar, que ocorreu pelo menos dois anos depois, por outras vias, mas é certo que conhecer os feitos de alguém como Sebastião Salgado (cuja história de vida me impactou antes das imagens) colocou meu novo ofício no campo das possibilidades.
Críticas e retrato da dignidade humana
Pessoa pública com grande notoriedade, Sebastião Salgado foi aclamado e também criticado. Na minha visão parcial, a maioria das críticas dirigidas à sua obra, sintetizadas na ideia de estetização da pobreza, carecem de profundidade. Lamento por isso, pois críticas de maior esmero agregariam bastante, se não para o próprio Salgado, possivelmente na formação de novos fotógrafos.
Num panorama geral não havia em suas imagens a perpetuação da miséria alheia, mas uma tentativa de extrair a dignidade humana apesar da escassez material e outras privações. Isso se reflete tanto no ato fotográfico quanto no apuro técnico de suas cópias feitas em laboratório analógico artesanal. Essa plástica sofisticada do Preto & Branco incomodou muitos intelectuais da arte. A beleza na materialidade de suas ampliações foi acusada de amortecer a indignação que o conteúdo das fotografias deveria gerar.
Tais críticas orbitam a ideia de que fotografar um contexto de precarização e vulnerabilidade é necessariamente fazer uma denúncia. Nem sempre é assim e majoritariamente a obra de Sebastião Salgado não se propôs a isso. Penso que uma crítica mais ciosa seria dirigida ao excesso de glorificação contida em seus personagens fotografados, muitas vezes resumidora de outros âmbitos da experiência humana como a irreverência jocosa, o lazer popular, a libido – em suma, a reinvenção da vida pelo prazer e pela diversão. O humano que não se limita ao sofrimento também não se esgota na dignidade idealizada.
Rejeição ao rótulo de artista
Salgado reiteradamente afirmou que não era artista, preferindo situar seu trabalho no âmbito do jornalismo e da informação. Fez isso de forma prudente, pois evitando o rótulo de artista, esquivou-se de lidar frontalmente com a crítica de arte e seus efeitos deletérios. Para ele, somente o tempo define o que é ou deixa de ser arte. Evidentemente nunca precisou do sistema ou do mercado da arte para legitimar ou financiar seu trabalho, assim como dispensou o prestígio proporcionado por sua presença entre o rol de fotógrafos membros da Magnum Photos, da qual se desligou em 1994 para fundar sua própria agência, a Amazonas Images.
Salgado ousou deixar a Magnum – prestigiosa cooperativa internacional de fotógrafos fundada em 1947 – visando maior independência com a Amazonas, a qual se referia como a menor agência do mundo, contando com somente um fotógrafo, ele próprio. Tal desafio não seria alcançado sem Lélia Wanick Salgado, arquiteta e esposa de Sebastião, responsável pelos processos de edição e distribuição de seu trabalho, tanto na forma de livros quanto das exposições de circulação global.
Família
Casados desde 1967, Lélia Wanick ocupa centralidade na difusão da obra de Sebastião Salgado. Dificilmente um realizador de imagens poderia dedicar-se de maneira tão profícua à essência de seu trabalho, sem delegar a alguém de sua alta confiança a incumbência da pós-produção, gerenciando as etapas envolvidas na preparação e chegada de produtos coesos ao público.
O ainda economista Sebastião Salgado deixou o Brasil com Lélia Wanick em 1969, em meio às tensões da ditadura militar brasileira, exilando-se em Paris e acolhidos por militantes do partido comunista – uma história que nunca foi claramente exposta. Salgado tornou-se profissionalmente um fotógrafo em 1973 e com a Lei da Anistia, em 1979, retornou ao Brasil, atravessando o país de carro, juntamente com Lélia Wanick, por milhares de quilômetros, sedentos por explorar profundamente o território de suas identidades, do qual compulsoriamente haviam se retirado uma década antes. Parte deste material está publicada no primeiro livro do fotógrafo, Outras Américas, de 1985.
Juntos, em 1998, Salgado e Wanick também fundaram o Instituto Terra, localizado no município de Aimorés, região do Vale do Rio Doce, interior de Minas Gerais, cuja motivação inicial foi a restauração ecossistêmica da Fazenda Bulcão, área com mais de 600 hectares que pertencera ao pai do fotógrafo e na qual Salgado ou sua infância e adolescência. Aliaram-se a grandes financiadores para criação desta Reserva Particular do Patrimônio Natural de Mata Atlântica, que atualmente promove educação ambiental e desenvolvimento rural sustentável na região. Visionários, uniram a militância ambiental ao último projeto fotográfico de longa duração que Salgado se empenhou, o Gênesis, realizado de 2004 a 2012, promovendo conjuntamente a fotografia, o Instituto Terra e a pauta da conservação natural. Na última década dedicou-se a documentar os povos indígenas da Amazônia.
História da fotografia
Como profissional da imagem, Salgado foi hábil ao construir e sedimentar sua própria figura pública. Militante ponderado, engajou-se em favor do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) e pelo combate à fome e erradicação da poliomielite, realizando fotografias, mas indo além, valendo-se de sua influência no debate público. Conviveu nos círculos de poder – midiático, político e financeiro – atuando como elo entre o centro e as periferias globais.
Nome incontornável na história da fotografia, Sebastião Salgado faleceu na sexta-feira, 23 de maio, em Paris, por consequências de complicações decorrentes da malária. Deixa a esposa Lélia e os filhos Juliano e Rodrigo. Seu legado não poderá ser medido, impactando nos retratados, no público espectador e na vida de tantos realizadores que, assim como eu, laçaram-se numa guinada profissional em prol das imagens e da alteridade, inspirados pela trajetória de um brasileiro que se tornou-se um ícone mundial tão emblemático quanto suas próprias fotografias.
(*) Cyro Almeida recebeu os prêmios Funarte Marc Ferrez de Fotografia e Pictures of the Year Latin America (POY Latam).