-
Brasil é o segundo país que mais faz cirurgias plásticas no mundo
-
É simplista resumir o comportamento humano a uma questão de temperamento
-
Desequilíbrio na dopamina explica tanto sofrimento com a dependência emocional
-
Brasil é o país com maior número de vítimas de roubo de dados na internet
-
Nova lei amplia direito das mulheres à laqueadura, mas médicos ainda se recusam a realizar a cirurgia
Borderline: conhecimento é remédio contra estigma que recai sobre transtorno citado por Maraisa
Cantora sertaneja lançou música, depois retirada do ar, em que associa diagnóstico a comportamentos pejorativos
Após lançar um vídeo cantando uma música que associa o Transtorno de Personalidade Borderline (TPB) a uma série de características pejorativas, inclusive fazendo ligações entre a condição clínica e o contexto de um relacionamento abusivo, a cantora Maraisa, da dupla sertaneja com Maiara, apagou o conteúdo, que vinha atraindo críticas do público por contribuir para a banalização e estigmatização do diagnóstico.
“Nem preciso de CRM pra diagnosticar essa loucura que cê tá vivendo / Fiquei sabendo que ele namorou outras pessoas / Pra cada uma ele foi um personagem / E esse perfil se encaixa numa personalidade borderline”, dizia um trecho da faixa, sugerindo não ser preciso conhecimento médico – no caso, o registro no Conselho Regional de Medicina (CRM) – para diagnosticar o transtorno.
Em outros trechos, a música “Borderline” – cujo lançamento, aparentemente, foi cancelado – segue indicando não ser possível ou saudável se relacionar com pessoas que tenham este diagnóstico. “Repara ele te isolou de todo mundo / Não romantiza esse absurdo / Ele é instável, ele é intenso, ele é extremo / E nesses casos todo mundo sofre junto”, canta Maira, que, depois, completa: “Ele não precisa de você nem do seu sentimento / Só de tratamento”.
Embora não tenha acompanhado as discussões em torno do lançamento, no fim do mês ado, ao saber sobre o episódio, a médica psiquiatra e psicanalista Marília Brandão Lemos é enfática: “(A música) só reforça preconceitos e estereótipos contra os portadores de transtornos mentais, o que é muito prejudicial, porque o TPB não é ‘loucura’, não é ‘manipulação’ e, portanto, os portadores desse transtorno não são ‘loucos’”, estabelece.
Por isso, na avaliação da psiquiatra Tatiana Mourão, professora do Departamento de Saúde Mental da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (FM/UFMG), a decisão de tirar o vídeo do ar foi acertada. “O TPB foi formulado há muitas décadas e faz parte de diagnóstico psiquiátrico também há muitos anos. Foi apropriado que se retirasse a música das redes sociais, pois ao ler a letra da canção se percebe que o conceito de Borderline é utilizado de uma forma leiga que pode levar ao preconceito com pessoas que sofrem, e muito, como vejo na minha prática psiquiátrica há anos atendendo pessoas que sofrem com esse transtorno”, defende.
Ela continua detalhando que a conceituação de Borderline (Fronteira) implica que a pessoa que sofre este transtorno se encontra na fronteira entre funcionamentos chamados de neurótico e psicótico: “A pessoa sob estresse pode ar a ter comportamentos que se situam na psicose; além disso, a impulsividade é muito acentuada em pessoas com TPB”.
“É como se a pessoa ficasse em uma corda banda, caindo no mundo da neurose (a estrutura de personalidade mais comum e saudável, em que os indivíduos têm a necessidade de seguir as normas e se sentem culpados quando não conseguem fazê-lo) ou da psicose (estrutura em que a percepção da realidade fica prejudicada, afetando a capacidade de julgamento do sujeito). São pessoas que, em linhas gerais, terão dificuldades com a frustração, pânico em relação ao abandono e vão oscilar entre sentimentos de amor e de ódio em relação ao outro”, informa.
Remédio contra o preconceito
Em contraposição aos preconceitos que proliferam na sociedade e aparecem também na música da sertaneja, Marília defende ser importante que mais pessoas procurem conhecer essa condição para além dos estigmas associados a ela. Só assim, sustenta, os sintomas vão deixar de ser lidos como “frescura”, “vontade de aparecer” ou “manipulação”. Além disso, a partir do conhecimento, a profissional acredita que mais pessoas podem buscar diagnóstico e tratamento adequado.
“Acho ótimo que os transtornos mentais sejam tratados com menos tabu nas redes sociais, isso ajuda a diminuir preconceitos quando os conteúdos são informativos e esclarecedores para o público, contribuindo para a diminuição do estigma que os portadores de transtornos mentais usualmente carregam”, prossegue a médica.
Quando seguem o caminho oposto e reforçam estereótipos, porém, o dano pode ser grande e precisa ser levado a sério, não minimizado como “coisa da internet”. “As redes sociais são uma realidade do mundo que veio para ficar a longo prazo, logo precisamos de conviver com elas, para o bem e não para o mal. Estive na semana ada em um congresso de psiquiatria no Canadá. Trabalhamos muito com este novo aspecto da vida, as redes sociais, que é ‘vida real’ para muitos jovens. Partindo dessa premissa, então, não podemos mais falar em uma separação entre o mundo real e mundo virtual”, destaca Tatiana, que pondera: “O sofrimento que advém da rejeição e preconceito na ‘vida real das redes sociais’ é mais intenso em jovens que vivem grande parte do tempo nesse ambiente”.
Transtorno costuma ser percebido na adolescência
As psiquiatras Marília Brandão Lemos e Tatiana Mourão detalham que, em geral, o TPB, que atinge aproximadamente 6% da população, começa a ser percebido na adolescência ou no início da fase adulta. “Ao olhar para a história pregressa, podemos observar sinais mesmo na infância, mas é difícil que o diagnóstico seja feito em crianças”, observa a primeira. Ela também cita que, na maioria das vezes, os sintomas ficam mais brandos à medida que o tempo a.
Entre os fatores de risco para o desenvolvimento da síndrome há fatores biológicos, psicossociais e ambientais. “Sabemos que parentes de primeiro grau pessoas que têm esse transtorno tem 10% de chances a mais de desenvolvê-lo em comparação à população em geral”, observa Marília. “Abusos na infância – tanto físicos quanto psicológicos ou sexuais – parecem estar mais correlacionados (ao borderline)”, adiciona Tatiana.
Ainda falando do perfil desses pacientes, a docente da UFMG cita que, embora algumas pesquisas indiquem maior incidência em mulheres, é precoce fazer essa afirmação, dado que faltam estudos mais conclusivos que se detenham sobre esse recorte de gênero.
Identificação e tratamento
Identificar o borderline é tarefa que exige tempo. “Não é algo que vai ser feito na primeira consulta”, adverte Marília Brandão Lemos. Quando autorizadas pelos pacientes, conversas entre o profissional de saúde mental e familiares podem contribuir para um reconhecimento mais rápido do distúrbio.
A professora da Faculdade de Medicina da UFMG, Tatiana Mourão, acresce que, muitas vezes, é preciso fazer o diagnóstico diferencial entre o Transtorno Borderline e outros transtornos psiquiátricos, entre eles o Transtorno Bipolar.
A psicoterapia, diz, é a principal linha de tratamento da síndrome – e será, via de regra, de longo prazo. Além disso, sintomas podem ser minimizados com psicofármacos, que devem ser usados apenas quando prescritos por especialistas. Se houver comorbidades, os quadros de borderline podem ser agravados, e é necessário tratar todos os problemas.