-
Cruzeiro e Valentín Gómez avançam nas negociações; saiba tudo
-
Médica avalia mudança em parto de Brunna Gonçalves: 'Leva a graves lesões'
-
Ave extinta por 50 anos volta a habitar maior área de Mata Atlântica em MG
-
Comissão concede anistia política a Dilma Rousseff e aprova indenização de R$ 100 mil
-
Atlético e Cruzeiro têm opções livres na próxima janela; confira
Carnaval, deuses e homens
Festivais atenienses em honra a Dioniso e as Saturnálias romanas se assemelham à nossa folia
Terça-feira de Carnaval. A folia está solta em todo o país. Os cortejos seduzem os foliões. O que muitos não sabem é que os deuses gregos e romanos inspiraram esta que é considerada a maior festa popular do mundo. “Na Antiguidade, figuras como o rei Momo, personificação do sarcasmo, abriam a festa e guiavam o cortejo. Sátiros entoavam o coro com suas flautas e, por último, o cortejo dos Príapos, figuras com enormes pênis eretos, zombando do pênis miudinho, que era então o padrão da beleza masculina”, comenta Angelo Pereira Campos, filósofo formado pela Universidade Federal de Minas Gerais, psicanalista, escritor e produtor cultural.
E o filósofo provoca: “Por mais paradoxal que possa parecer aos mais conservadores, aos rabugentos ou aos desavisados, Carnaval é festa deífica. Os personagens centrais representam coros divinos e puxam uma procissão. De origens arcaicas, atravessa eras e culturas até a secularização que permeia os tempos modernos”.
Campos ensina que, na Antiguidade, pelo menos duas celebrações se somam em características semelhantes: “os festivais atenienses em honra a Dioniso e as saturnálias romanas, realizadas no solstício de inverno, dias antes do nascimento do Solis Invicti, ambas marcadas por costumes ditos desregrados”.
E prossegue: “Dioniso, o último dos filhos de Zeus, o dupla (ou triplamente) nascido, é certamente o mais estranho dos deuses. Estranho, não por casuísmo do adjetivo, mas por ser mesmo uma entidade ‘estrangeira’ (‘xenós’). O antigo culto agrário da colheita das uvas, na região do Cáucaso, chega à Hélade por volta do século VI a.C., atraindo atenção dos populares com música, dança, vinho e exacerbação sexual. ou por inúmeras proibições até a consolidação poética dos ditirambos e a encenação com máscaras do poeta-ator Téspis, cuja famosa expressão ‘eu sou Dioniso, o Deus’, fez nascer o teatro entre os gregos”.
Essa celebração da alegria e da arte fez brotar não somente uma, mas quatro celebrações anuais em torno de Dioniso. “Uma delas – as Antestérias (palavra que significa ‘antes da primavera’) – durava três dias, iniciando-se com um cortejo de potes de vinho provenientes das regiões rurais até o santuário, em Atenas. Os recipientes eram abertos à noite, e as primeiras libações simbolizavam a chegada do deus. Nenhuma outra divindade é cultuada nesse período, só esse estranho e seus seguidores, ainda mais esquisitos”, revela Campos.
No segundo dia, diz o filósofo, “a estátua de Dioniso avança pela cidade em um carro alegórico em forma de navio, o carro naval, uma procissão seguida por um cortejo de mascarados. Um grupo de cidadãos tenta beber a maior quantidade de vinho no menor tempo possível. O vencedor recebe um odre de vinho (cerca de vinte litros). O dia segue ao estímulo de cânticos e embriaguez e, à noite, uma procissão acontece em um lugar chamado ‘bucólion’ (remissão ao agrário e ao pastoreio), que celebra a ligação carnal entre o sacerdote e a sacerdotisa, simbolizando o casamento de Dioniso e Ariadne”.
Campos narra o derradeiro dia, que conta com um rito destinado à memória dos mortos. “As famílias preparavam vasilhames de um alimento à base de mel e cereais, que seriam ofertados a Hermes e Dioniso, como mensageiros do mundo subterrâneo, pela intenção de seus entes queridos. O rito se encerra. Pelo menos oficialmente”.
“A consciência quer se ver a partir de outro registro”
O Carnaval atual é “o esperado momento da inversão de papéis por meio das formas alegóricas, pelo bem da manutenção da sanidade coletiva face às pressões e exigências da vida cotidiana”. “No Carnaval, o planeta parece girar ao contrário, a consciência quer se ver a partir de outro registro. Essa é propriamente sua característica fundante”, comenta Angelo Pereira Campos.
Já na Roma Antiga, “a introdução das celebrações causou um tremendo choque ao povo acostumado às benesses da urbe”. “O historiador Tito Lívio relatou a ocorrência de todo tipo de crimes, luxúria e obscenidades, incluindo o aumento das conspirações palacianas. Eram dias de grande perigo, a melhor época do ano para pequenas e grandes vinganças”, explica o filósofo.
Mas o que restou dessas festanças antigas? “As esculturas, pinturas em cerâmicas, poesia ditirâmbica, lendas e distorções. A Itália preservou a tradição das máscaras nas preciosas criações do Carnaval de Veneza. A França medieval preservou elementos das Saturnálias, com festas de mascarados sendo realizadas no átrio de Notre-Dame até o séc. XVI”, relembra Campos. (AED)
Olhar crítico e social
Na era dos deuses, “as bacantes eram as sacerdotisas de Dioniso, deleitavam-se com a embriaguez até se tornarem veículos do deus. Dirigiam o culto através de danças frenéticas, até alcançarem o mais completo êxtase”, ensina Angelo Pereira Campos.
Já Príapo “foi um antigo deus agrário, protetor das hortas e jardins. Sua figura deriva de cultos muito antigos, tendo sido assimilado pelos gregos na condição de pênis apotropaico, com capacidade de afastar o mal. Tendo sido preterido diante do culto a deuses mais belos, foi acolhido nas festividades da uva, fazendo parte do séquito de Dioniso”, observa o filósofo.
Chegando ao século XIX no Brasil, as marchinhas de Carnaval dominam. “O destaque fica por conta de Chiquinha Gonzaga e das celebrações nos terreiros afro-brasileiros, de onde brotaria o samba em seus precursores Donga, Mauro de Almeida e Sinhô. Com o surgimento das escolas de samba e sua assimilação ao Carnaval, chegamos ao samba-enredo e ao estilo carnavalesco de pura identidade brasileira”, acentua Campos.
Hoje, finaliza o filósofo, “o Carnaval se expressa pelo acentuado olhar crítico para as mazelas sociais, pela falência das promessas políticas e econômicas e pelos descaminhos do tempo presente em suas torpezas desenfreadas”, finaliza o estudioso. (AED)