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Tatiana Lagôa

Tatiana Lagôa é jornalista e integra a lista dos 550 jornalistas mais premiados do Brasil. Atualmente, é editora de Cidades, colunista responsável pela Coluna RepresentAtividade e integrante do Programa Interessa, da FM O TEMPO.

REPRESENTATIVIDADE

O ‘papa negro’ e o racismo estrutural

Mas, e se ele for negro? Aí, dizem por aí, o mundo acaba. E o que esse pensamento diz sobre nós, a religião e o racismo estrutural?

Por Tatiana Lagôa
Publicado em 25 de abril de 2025 | 06:00

A morte do papa Francisco, mesmo que de certa forma esperada em função do estado de saúde dele, entristeceu e deixou uma legião de fiéis órfãos da caridade e da visão de mundo aberta do pontífice. Fato é que o próximo escolhido para liderar a Igreja Católica no mundo vai ter o desafio de conquistar o coração das pessoas após um papado com tantos avanços. Mas, e se ele for negro? Aí, dizem por aí, o mundo acaba. E o que esse pensamento diz sobre nós, a religião e o racismo estrutural? 

Se você, assim como eu, foi criado em um lar que segue o catolicismo ou em uma cidade com um forte contexto religioso, dificilmente não foi apresentado para as teorias sobre o fim do mundo e os sinais, que “estão aí” desde os nossos tatataravós. Afinal, o ser humano teme o fim do mundo em uma proporção imensa, mesmo que, no final das contas, o que acaba é cada mundo individualmente, com a morte. E quando surge uma teoria que justifique esse medo ou o alimente, desde que ela coincida com o pensamento geral, vai emplacar. E é aqui que entra a tal história do papa negro como uma suposta indicação de que “é o fim da aventura humana na terra”, como cantamos no Carnaval. Em todos os Carnavais, inclusive. 

Mas, voltando ao papa negro. Não existe NADA, nadinha de nada, escrito na Bíblia atrelando o fim do mundo ao papado. Essa teoria teria surgido na Idade Média, quando crises vividas pela Igreja Católica criaram espaço fértil para profecias. Uma delas, com veracidade de autoria já questionada por historiadores, seria de são Malaquías e falava de um suposto papa que “governaria” em tempos de dificuldades para o catolicismo. Mas nessa época não foi citada a cor do papa do fim do mundo. 

E aí, a gente já consegue imaginar como um preto foi parar nessa história triste, né? Se avançarmos na contextualização histórica, chegamos aos jesuítas, que viam os negros como “desprovidos de alma” e, portanto, aptos a serem tratados como animais durante a escravização de pessoas capturadas na África. Mas, no meio do caminho, também teve o profeta francês Nostradamus, que falou de um rei negro que viveria tempos de crise. Não necessariamente nessa ordem cronológica, mas teve esse emaranhado de situações soltas que reforçaram a teoria da conspiração em um solo fertilizado por muito racismo. 

ada a contextualização, vamos para o agora. Com a morte do papa, começam os trabalhos para a escolha do próximo. Entre os cardeais negros mais citados estão Peter Turkson, 76, de Gana, Robert Sarah, 79, da Guiné, e Ambongo, 65, da República Democrática do Congo. O perfil deles já circula em vários sites, e temos debates sobre o que cada um defende, assim como os outros possíveis futuros papas. Concordando ou não com o que eles pensam, uma coisa é fato: teríamos que aprovar ou desaprovar um futuro líder religioso, com tanto poder sobre como milhões de pessoas vão pautar o que é certo ou errado, com base no que cada um deles defende. Profecias sem fundamento não deviam impactar a receptividade de um futuro papa. 

Sabemos que supostos profetas surgem no mundo todo e o que eles pensam sempre vai ter a limitação do recorte do tempo e espaço em que eles viverem. Então, é esperado que as visões de mundo, incluindo os preconceitos de cada época, sejam bases para profecias. Até aqui tudo bem. Mas aqui eu preciso perguntar: por qual motivo a teoria do papa negro não caiu depois de tantos anos? Acho que quem defende que não existe mais racismo no mundo talvez tenha gaguejado internamente nessa resposta. Mas a explicação é até óbvia, na verdade. Enquanto o racismo for estrutural e estruturante, qualquer teoria que explique o não pertencimento do negro vai pegar. Seja por racismo ou hipocrisia. Mas que vai pegar, vai.