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Paulo Paiva

Professor associado da Fundação Dom Cabral, Paulo Paiva escreve às sextas-feiras

CINEMA

Gritos de alerta

As indicações de 'Ainda Estou Aqui' para concorrer a Melhor Filme do Ano e de Fernanda Torres à de Melhor Atriz acenderam uma chama de orgulho nos brasileiros

Por Paulo Paiva
Publicado em 31 de janeiro de 2025 | 06:00

As indicações pelo júri do Oscar de “Ainda Estou Aqui” para concorrer a Melhor Filme do Ano e de Fernanda Torres à categoria de Melhor Atriz acenderam uma chama de orgulho nos brasileiros, que andavam carentes de razão para demonstrar sua vaidade patriótica, cujos símbolos – inclusive a “amarelinha” da seleção – foram apropriados por interesses políticos divisionistas.

O filme é ambientado nos anos sombrios da ditadura militar, que os brasileiros com menos de 50 anos não viveram. O filme de Walter Salles reconstruiu a vida de uma família de classe média no Rio de Janeiro, cujo chefe, Rubens Paiva, foi retirado de casa e nunca mais visto por sua esposa, Eunice, e seus cinco filhos. Anos depois, já adulto, o filho Marcelo escreveu o livro que forneceu o argumento para o filme.

O bem-elaborado roteiro não segue o rumo esperado de um filme sobre aquele período negro da história, que seria centrado, como tantos outros, na militância política dos que escolheram a luta armada para resistir à ditadura. Ao contrário, o foco está no cotidiano de uma família de classe média, que não tinha nenhuma militância política antes, e em como ela lidou com a tragédia, depois do sequestro e do desaparecimento do pai.

O sensível e generoso Selton Melo nos deixa a imagem de Rubens Paiva como um ser humano comum, carinhoso, feliz e de bem com a vida. Fernanda Torres representa a destemida Eunice Paiva, mulher dedicada à família, amada pelo marido e que, após o sequestro dele, assume novos desafios, criando seus filhos, voltando a estudar e, simultaneamente, lutando sem tréguas para encontrar Rubens e para obter o reconhecimento oficial de seu assassinato pela repressão militar.

Não é apenas a vida de Eunice Paiva que está sendo revelada pela arte cênica brasileira. Pode-se assistir, no teatro Poeira, no Rio de Janeiro, à história da professora primária Mércia Albuquerque, que presenciou, perto da praça de Casa Forte, em Recife, no dia 2 de abril de 1964, a prisão do líder comunista Gregório Bezerra, constituinte de 1946, que, há época, com mais de 60 anos, foi arrastado impiedosamente pela rua. 

Esse fato mudou a vida de Mércia, que, também advogada, tornou-se defensora de mais de 500 presos políticos. Seus diários deram o argumento para a excelente peça de Silvia Gomes, com a atriz Andrea Beltrão e a direção de Yara de Novaes.

Essas duas histórias estão diretamente conectadas, como se vê no relato que Dionary, presa e torturada em Recife, fez a “Lady Tempestade”, sobre o que lhe diziam seus torturadores: “Nós matamos a senhora e ninguém vai saber”. A desconhecida Dionary não foi assassinada, e a execução de Rubens Paiva, no Rio de Janeiro, não ficou, como muitas outras, oculta, pois foi reconhecida graças à tenacidade de Eunice Paiva. São gritos de alerta contra a usurpação da liberdade pela opressão do Estado. A este cabe proteger a vida, e não retirá-la.