Célia Xakriabá

Mulherizando o Congresso Nacional

Violência política de gênero

Por Célia Xakriabá
Publicado em 23 de junho de 2023 | 07:00

Começo aqui lembrando um conceito básico. Genocídio é a eliminação sistemática e intencional de um grupo por meios ativos (aplicação de forças que resultem namorte) ou ivos (negligência e negativa de prestação de assistência).

Em geral, os grupos vítimas de genocídios apresentam indivíduos com ligações étnico-raciais, de nacionalidade e religiosas. Seja pelo genocídio, ecocídio ou etnocídio, estamos falando aqui de várias formas de extermínio. Não apenas um extermínio ativo de nossos corpos, mas da nossa cultura, da nossa forma de existência e de toda a ancestralidade que carregamos em nossos corpos-território. 

Às vezes é preciso explicar conceitos a quem muito fala, muito berra e pouco escuta. Essa é a dinâmica que vivenciamos diariamente no Congresso Nacional. Após duas semanas de intensa resistência contra o PL 490, que apresentou uma série de retrocessos nos direitos dos povos indígenas e tenta antecipar a tese do Marco Temporal no Legislativo, foram as mulheres que estiveram na linha de frente. E somos nós, mulheres eleitas, que agora fazem de alvo e tentam intimidar como retaliação. 

Logo após a votação da urgência do PL 490, o Partido Liberal entrou com um pedido coletivo de cassação contra meu mandato e o de outras cinco parlamentares. As alegações são sobre o nosso posicionamento diante de uma matéria que pode significar, sim, a continuidade de um projeto programado de ecocídio. Se para nós, povos indígenas, não é possível separar corpo e território, como pensar em um projeto que retira o direito ao território sem ferir nossas vidas? E como não falar disso?

Para além do absurdo que representou a aprovação do PL 490, que agora tramita no Senado Federal como PL 2.903, estamos falando aqui de mais um episódio de violência política de gênero. Enquanto vários outros processos demoraram centenas de dias para tramitar no Conselho de Ética, em algumas horas, retiraram o pedido coletivo contra nós e aprovaram pedidos de cassação individual. 

Dois pesos e duas medidas? Nós nos perguntamos. Sim, acredito que sim. E não se trata apenas de uma discordância política ou de conflitos diante do tema tratado. Trata-se de um episódio machista contra seis mulheres; nos chamaram de “irracionais”, de “não civilizadas”. Usam o Conselho de Ética para impedir nossas vozes e nos ameaçam com cassação ou com a suspensão de nossos mandatos. 

Como é possível pedir a punição de mulheres que democraticamente defendem a vida dos povos indígenas, o meio ambiente e nossos biomas e não punir os que nos chamam de “irracionais” e perpetuam crimes de racismo, perpetuam violência e seguem um projeto de destruição? Não pararei de dizer: são os Pedros Álvares Cabral do século XXI. Mudaram as armas de nos matar, mas a intenção e os alvos seguem os mesmos: os povos indígenas, as mulheres, os quilombolas e qualquer diversidade que se coloque em uma casa de senhores. 

Quando falamos em romper com a violência política de gênero, não falamos apenas de ocuparmos cadeiras no Parlamento e de nos elegermos. É preciso pensar na permanência, pensar em nossa estada nesses espaços. Se eles se sentem à vontade para tentar nos intimidar, para usar do deboche e para coibir nossa atuação, não há outra forma de chamar. Estamos, sim, falando de violência, de violações e de tratamento diferenciado para homens e mulheres na política do nosso país. 

São recorrentes as comparações que faço diante de várias situações. Se um deputado sobe na tribuna para denunciar crimes, ele é um deputado combativo. Nós estamos sendo chamadas de “irracionais”, e pedem até punições. Se articulamos ou deixamos de lado o embate caloroso, somos chamadas de “fracas”. Se fosse um homem, seria habilidoso na política. Poderia fazer inúmeras comparações, mas fato é que, desta vez, estamos diante de deputados que acham normal me chamar de “cosplay de indígena” ou “índia fake”, mas acham um absurdo quando denunciamos a promoção de um etnocídio legislado no Congresso Nacional. 

Se o crime de racismo não é considerado, por que as nossas constatações sobre os reflexos do que estamos legislando seriam motivo de punição? E contra a violência política de gênero, escolhemos sempre a saída coletiva. Seguiremos juntas eu e as deputadas Taliria Petrone, Sâmia Bomfim, Fernanda Melchionna, Juliana Cardoso e Erika Kokay. Seguiremos denunciando, falando, mulherizando e oncificando Brasília. 

Célia Xakriabá é deputada federal (PSOL-MG)

(*) Excepcionalmente hoje, a coluna de Célia Xakriabá está sendo publicada na sexta-feira