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Célia Xakriabá

Célia Xakriabá é primeira deputada federal indígena eleita por MG. Escreve em O TEMPO mensalmente, às quintas-feiras.

CÉLiA XAKRIABÁ

Reflexo de uma memória não curada com as mulheres

PL 1.904, do aborto, revive um ciclo histórico de abuso e dor

Por Célia Xakriabá
Atualizado em 20 de junho de 2024 | 07:28

O encontro forçado entre os povos de cuidado e trabalho e a lógica predatória do invasor, acostumado a escravizar e expropriar, molda um Brasil atual que necessita encarar sua história e curar as feridas de suas memórias para edificar um futuro mais justo para todos. E aqui falamos da tramitação, no Congresso Nacional, do Projeto de Lei 1.904/2024, de autoria do deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) e de outros, propondo alterações no Código Penal para equiparar o aborto realizado após 22 (vinte e duas) semanas de gestação ao crime de homicídio simples, mesmo nas hipóteses permitidas pela legislação vigente, como nos casos de risco à vida da gestante ou de gravidez oriunda de estupro. O Brasil precisa de políticas públicas que protejam as vítimas de estupro, e não que as criminalizem.

Apesar, sobretudo, dos impactos da mudança na lei, não houve um debate amplo sobre o assunto. O PL foi apresentado em 17 de maio de 2024 e, quase de imediato, vários deputados solicitaram urgência para que fosse votado diretamente no plenário, evitando a análise pelas comissões pertinentes da Casa e alterando o procedimento legislativo usual. Como resultado, em 12 de junho de 2024, os requerimentos de urgência foram aprovados por votação simbólica.

Nesse sentido, não só em seu conteúdo, mas também no trâmite para sua votação, o PL 1.904 revive um ciclo histórico de controle, abuso, dor e silenciamento. A quem serve silenciar mulheres, meninas, pessoas que gestam, vítimas de violência? Quem são aqueles que incessantemente atacam o feminino, a terra e a vida? 

“História se repete”, disse Marx, “primeiro como tragédia, depois como farsa”. Em 1551, em resposta aos apelos de missionários no país, chegaram as primeiras mulheres europeias – 18 órfãs adolescentes destinadas a se casarem com os colonos. Esse evento trágico foi um lembrete sombrio: o estupro não pode criar uma família. No entanto, séculos depois, ainda lutamos para enfrentar e erradicar a cultura do estupro enraizada em nosso país.

De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022, a violência sexual no Brasil revela números alarmantes quanto à idade e raça das vítimas. A pesquisa aponta que 8 em cada 10 vítimas de estupro eram crianças e adolescentes, com 61,4% delas tendo até 13 anos. Além disso, 56,8% das vítimas de estupro e estupro de vulnerável eram identificadas como pretas ou pardas.

Também não é de hoje que o estupro vem sendo usado como estratégia de expropriação cultural e territorial das populações indígenas, e, não por outro motivo, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e a Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (Anmiga) lançaram manifesto contra o “PL da gravidez infantil”, denunciando que “desde 1500, nós, corpos territórios dos mais diversos biomas do país, tivemos nossos direitos violados e nossos corpos violentados. Hoje, no século XXI, aqueles que dizem representar o povo, mais uma vez, nos violentam e pretendem encarcerar as vítimas”. 

Esse projeto de lei demonstra um profundo desrespeito e desprezo à dignidade e à saúde das vítimas, criando uma desproporcionalidade significativa no sistema jurídico brasileiro. Para ilustrar esse ponto, o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) fez um paralelo: caso o projeto seja implementado, uma mulher que sofre violência sexual seria considerada pelo Estado brasileiro muito mais criminosa do que o agressor; mais criminosa do que alguém que sequestra e priva outra pessoa de sua liberdade, causando grave sofrimento físico ou moral à vítima; mais criminosa do que alguém que submete outra pessoa à condição análoga à escravidão; mais criminosa do que alguém que trafica pessoas para remoção de órgãos, escravidão ou exploração sexual, especialmente quando envolve crianças, adolescentes, pessoas idosas ou com deficiência; e tantos outros exemplos comparáveis.

Mesmo com o recuo do presidente da Câmara, Arthur Lira, que afirmou que o PL será apreciado apenas no segundo semestre, após uma forte pressão da sociedade, enfrentamos um momento crucial para nossa consciência coletiva. É um teste de nossa capacidade de reconhecer e superar os traumas que ensombram nossa história, em busca de uma justiça que honre verdadeiramente a dignidade feminina. Devemos rejeitar essa queda do céu distorcida e realinhar-nos com a vida em toda a sua plenitude. 

CÉLIA XAKRIABÁ
Deputada federal (PSOL-MG)