SOS Saúde

Seis comprimidos salvariam bebê Yanomami

Profissionais de saúde relatam falta de insumos básicos e dificuldades que se arrastam há anos

Por Lucas Morais
Publicado em 14 de fevereiro de 2023 | 23:30

"O bebê veio a óbito em 18 de dezembro, e a medicação só chegou no dia 21”. O relato de uma técnica de enfermagem, que pediu para não ser identificada, é só um exemplo do drama vivido pelo povo Yanomami e que já se arrasta há décadas. Por mais de um mês, ela atuou em um posto de saúde precário, instalado na região do Parafuri, em Roraima, uma das mais afetadas pelo garimpo ilegal. Entre os dias que pareciam eternos, a profissional de saúde vivenciou um dos momentos mais marcantes de sua vida: a morte, no seu colo, de um bebê de apenas 2 meses por malária.

 

Muito debilitada, a pequena indígena foi diagnosticada com malária vivax, a mais comum e raramente mortal. “Qualquer bebê ou criança com menos de 9 kg pode ser tratado com uma medicação específica, e não tinha nenhuma delas no estoque”, conta a técnica. Com os olhos marejados, a mulher diz que solicitou o remédio pelos chamados “voos de rotina”, que levam insumos, alimentos e profissionais para as unidades de saúde da terra indígena. Mesmo diante do grave estado de saúde da bebê, os pedidos desesperados não foram suficientes. Nenhum remédio chegou.

 

“Chamei o pai e a mãe e contei que não tinha a medicação. Pedi para que fossem para a unidade de Surucucu e, inicialmente, relutaram, porque era um polo em que a fome estava muito pior”, acrescenta. Na manhã seguinte, a bebê retornou com febre muito alta. Quando solicitamos a remoção, já era tarde. Ela começou a convulsionar, o enfermeiro pediu ajuda no rádio, eu com a criança no colo, tentando reanimá-la. Ela voltou por uns 30 segundos, e a mãe segurou, mas logo os batimentos cardíacos pararam. Eles correram para o mato, e eu comecei a chorar, desesperada”, relata.

 

A lembrança do momento vem junto com o sentimento de indignação. “Com seis comprimidos, eu teria salvado a vida dessa bebê. Tenho certeza de que havia essa medicação, só não mandaram por negligência”, afirma. Pouco antes da morte da criança, a Polícia Federal realizou operação para investigar o desvio de recursos públicos do Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami DSEI/Y – as suspeitas apontam que apenas 30% dos mais de 90 tipos de medicamentos fornecidos para as unidades de saúde estavam sendo entregues. “De uns anos pra cá piorou muito, mas essa crise não é de hoje, vem há mais de 15 anos, e somente agora veio à tona.”

 

Mais de uma semana sem comunicação

 

Uma nutricionista, que pede anonimato, atuou por mais de um ano nas comunidades Yanomami. Na região do rio Palimiú, ela ficou mais de uma semana sem comunicação com a sede do Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) em Boa Vista – o rádio estava quebrado havia mais de seis meses, e o único meio era o orelhão, que pifou. Como quase tudo ao redor é contaminado pelo mercúrio do garimpo, ela chegou a matar a sede com água de chuva. “Há muita dificuldade logística. Às vezes, atrasamos sete dias em uma rotina por causa do deslocamento. Se chover em determinado local, o avião não pousa ou está em manutenção. Para tratar os quadros de desnutrição, havia apenas arroz e farinha. Como você recupera o estado nutricional de uma criança ou idoso? O paciente é acometido de pneumonia, malária. Daí, só com remoção para Boa Vista para ser tratado."

 

“Nos últimos quatro  anos, além dos gestores sem aptidão, o governo federal  não ouviu os  alertas”, Estêvão Senra Pesquisador do ISA

 

A unidade de Parafuri integra o sistema do DSEI/Y, que, segundo o Ministério da Saúde, conta com cerca de 800 profissionais, sendo 260 deles indígenas. Criado de forma piloto em 1993, num projeto de melhorias no atendimento de saúde aos indígenas, assiste 31.007 Yanomami de 384 aldeias – o DSEI/Y é estruturado pela Casa de Saúde Indígena (Casai), em Boa Vista, 37 polos-base e 78 Unidades Básicas de Saúde Indígena (UBSI).

 

De acordo com a pasta, por meio de nota pública divulgada no seu site em novembro de 2021, e atualizada um ano depois, os profissionais enfrentam dificuldades logísticas e climáticas; 95% dos os são por aeronaves.

 

Distrito que cuida de indígenas está sucateado há anos

 

O geógrafo Estêvão Benfica Senra, pesquisador do Instituto Socioambiental (ISA) – Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip) que observa povos indígenas em todo o país – explica que os DSEIs foram criados em 1993 para garantir a atenção básica permanente nos territórios indígenas.

 

“A ideia era ter em cada UBSI uma equipe multidisciplinar em caráter permanente para vacinar crianças, fazer vermifugação em massa, acompanhar grávidas com pré-natal e verificar a nutrição das pessoas, além de identificar infecções respiratórias e malária. Mas, após 2004, assistimos a um processo lento e gradual de degradação do sistema porque ele ou a ser controlado pela antiga Fundação Nacional de Saúde (Funasa).

 

Há mais de uma década os DSEIs sofrem sucateamento, segundo o pesquisador do ISA. “A partir de 2010, as coordenações dos distritos aram a receber indicação de políticos locais, já que os DSEIs executam de forma autônoma recursos da União. Até então, existia um tipo de transparência, e era possível cobrar, minimamente, algum controle social. Nos últimos quatro anos, além dos gestores sem aptidão, o governo federal não ouviu os alertas, e a gestão da pandemia de Covid-19 foi desastrosa”, aponta. Mesmo com aumento de recursos para os DSEIs, as melhorias não foram sentidas.

 

“Todos os indicadores de viroses, de vacinação, vermifugação e malária pioraram. Teve dinheiro? Teve, mas 30% do orçamento do DSEI Yanomami é para frete aéreo. E é sabido que muitos contratos beneficiam grupos empresariais da região, inclusive, suspeitos de estar envolvidos com o garimpo”, acrescenta.