'Se demorasse mais, elas morreriam': drama de um pai para salvar as filhas
Taxa de ocupação dos leitos de UTI na única instituição do Estado chegou a superar 70% no último mês

No olhar de cada mãe ao lado das redes da enfermaria do Hospital da Criança Santo Antônio, em Boa Vista (RR), o sentimento após dias de desespero é o de gratidão. Apesar de não falarem português, não é difícil entender a agonia por testemunharem a vida dos próprios filhos pequenos por um fio.
“Alguma coisa faltou, não posso confirmar o quê, mas sei que faltou (para contribuir para o estado grave de saúde). Uma criança que chega aqui desnutrida é porque ou fome, e é muito triste ver o pai e a mãe ando pela mesma situação”, conta a diretora geral da unidade, Francinete Rodrigues.
Em um único dia, o hospital recebeu 13 bebês e crianças indígenas de uma só vez, a maioria com quadros de desnutrição e doenças como pneumonia e malária. “Ainda bem que, no momento em que vieram, tínhamos leito e conseguimos internar”, frisa.
Matheus Sanöma, 53, é uma das lideranças dos Sanöma, povo Yanomami que habita a região do rio Auris, no extremo noroeste de Roraima. Os Sanöma também são extremamente afetados pela crise humanitária. No início de janeiro, Matheus precisou se mudar às pressas com as duas netas para Boa Vista, com o objetivo de salvar as vidas das pequenas. Além da desnutrição, as duas meninas estavam com malária.
“Se eu esperasse mais uma semana, elas morreriam”, diz. A mudança da família para a capital apenas foi possível por causa da corrente de solidariedade encabeçada por Mimika Sanumá.
Graças a uma vaquinha, foi possível arrecadar dinheiro suficiente para fretar o avião para a capital e ainda alugar uma casa, onde ficaram os 14 membros da família, que acompanharam o tratamento das pequenas. Uma das meninas chegou a ficar internada no Hospital da Criança Santo Antônio. “Estavam quase carne e osso”, conta Matheus Sanöma a O TEMPO, com a ajuda de Mimika Sanumá, que atuou como intérprete durante a entrevista. As crianças já receberam alta, mas a família ainda se encontrava em Boa Vista no início deste mês.
Desnutridos, bebês pesam metade do que deveriam
Relatos de profissionais de saúde mostram a tragédia causada pela crise humanitária vivida pelo povo Yanomami: bebês indígenas que deveriam pesar mais de 6 kg com apenas 3 kg, crianças de 7 anos que aparentam não ter nem 3 de tão desnutridas. Geralmente, segundo Francinete, os Yanomami ficam internados por um tempo maior no hospital devido ao estado de desnutrição.
ados os dias angustiantes na Unidade de Terapia Intensiva (UTI), os pequenos são encaminhados para as enfermarias. Em uma delas, um menino de aproximadamente 5 anos – depois de dias lutando para sobreviver – brinca ao lado da irmã. É o exemplo de que, chegando a tempo, o atendimento médico pode salvar uma vida.
Levantamento do Ministério dos Povos Indígenas divulgado no fim de janeiro revela que pelo menos 538 crianças com menos de 5 anos morreram no território Yanomami por causas evitáveis nos últimos quatro anos, quando a crise se acentuou.
Das 55 crianças indígenas internadas na primeira semana de fevereiro, 45 eram Yanomami. A ocupação dos leitos de UTI chegou a superar 70% no último mês. “Estamos vendo a possibilidade de aumentar os leitos de UTI, porque temos essa necessidade”, explica a diretora do hospital.
Entrevista com Francinete Rodrigues, diretora geral do Hospital da Criança Santo Antônio, em Boa Vista, fala sobre o atendimento a Yanomami
Como é a comunicação com as famílias Yanomami?
Em nosso Estado, temos um número grande de indígenas, então hoje temos um tradutor que consegue entender e transmitir para a gente. Por isso, não temos problemas de comunicação com eles.
E quanto ao atendimento?
O hospital já é preparado para receber esse tipo de paciente. Temos um bloco com duas enfermarias, e uma delas é de redes, porque eles dormem em redes e gostam. O banheiro também é adaptado para eles, como usam no formato da aldeia. Quanto à alimentação dos indígenas, os nutricionistas também preparam (os alimentos) conforme o hábito deles, o que são acostumados a comer. O intérprete é importante, caso contrário não conseguiríamos nos comunicar.
Como é lidar com esse aumento na demanda?
É uma situação que não deixa de ser preocupante, por conta do número de leitos, mas até hoje temos conseguido atender. Temos um problema também com alguns venezuelanos. O Estado tem recebido muitos refugiados. Nós os atendemos também, fazemos fronteira com dois países, que é a Venezuela e a Guiana. E há ainda 14 municípios no Estado, e todos (os pacientes deles) vêm para cá. Somos uma capital que tem 70% da população, e também damos cobertura para os outros municípios. É o único hospital infantil do Estado.
Qual é o impacto para a saúde do município?
Com certeza, estamos ando mais uma vez por uma situação delicada. (Além da crise dos Yanomami), hoje temos os venezuelanos que chegaram e tiveram filhos aqui, que são brasileiros. Não estávamos preparados para aquele momento, eles não param de chegar, e agora com essa situação indígena, que vem aumentando a cada dia... Impacta muito.