Mais da metade do ouro exportado pelo Brasil em 2021 tem origem duvidosa
Levantamento do Instituto Escolhas também mostra que parte do mineral explorado e vendido saiu de terras indígenas ou de unidades de conservação

Mais da metade do ouro exportado pelo Brasil em 2021 – 52,8 toneladas, que corresponde a 54% da produção nacional – tem origem duvidosa e com indícios de irregularidades, segundo o Diagnóstico sobre os Caminhos do Ouro Ilegal, levantamento feito pelo Instituto Escolhas, uma organização sem fins lucrativos baseada em São Paulo, que desenvolve e compartilha análises e estudos sobre desenvolvimento sustentável. O levantamento mostra ainda que parte do mineral explorado e vendido pelo país saiu de terras indígenas ou de Unidades de Conservação (áreas consideradas relevantes e íveis de proteção federal, estadual e municipal), por meio de garimpo ilegal.
Em janeiro deste ano, o projeto Amazônia Minada, que acompanha em tempo real processos minerários na Amazônia, divulgou que as terras indígenas da região são alvo de 2.449 requerimentos para exploração mineral. A Constituição brasileira proíbe qualquer atividade em territórios indígenas sem autorização do Congresso e consulta aos povos afetados.
Às margens da lei, essa exploração criminosa do ouro alimenta uma economia bilionária. O grama do metal é vendido a R$ 310, em média. A estimativa é que, entre janeiro de 2021 e junho de 2022, o mercado do ouro brasileiro tenha movimentado cerca de R$ 44,6 bilhões. O levantamento é do Boletim do Ouro, fruto de um estudo por pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) com procuradores da República.
Embora seja um mercado que movimenta cifras altíssimas a cada ano, é também um setor pouco transparente e cheio de brechas para atuações criminosas. A reportagem de O TEMPO solicitou dados e informações à Agência Nacional de Mineração (ANM) e à Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e ao Ibama, no fim de janeiro, que pudessem esclarecer e informar o leitor sobre como ambos os órgãos têm atuado na regulamentação, fiscalização e punição dos responsáveis pela mineração ilegal nas terras Yanomami. Nenhum dos três órgãos respondeu. Vários contatos foram reiterados entre o primeiro pedido e o dia 10 de fevereiro, sem sucesso.
O tema é tão delicado, e melindroso ao mesmo tempo, que alguns pesquisadores de universidades e especialistas não quiseram conceder entrevistas. Neste momento, em que a crise humanitária vivida pelos Yanomami lança luzes sobre os crimes praticados pelos garimpeiros ilegais e o rastro de destruição deixado por eles na floresta, poucas pessoas se arriscam a comentar a cadeia clandestina de exploração do ouro no Brasil. O medo não é à toa: há registros de que a facção Primeiro Comando da Capital (PCC), nascida em São Paulo e considerada a maior organização criminosa do Brasil, atue no garimpo ilegal, em Roraima.
Em 2020, os principais compradores do ouro brasileiro foram empresas do Canadá, da Suíça e do Reino Unido. “Os grandes mercados são quem consome esse ouro brasileiro. Ele é praticamente todo exportado, para grandes economias. Então, esse ouro sai daqui com pelo menos 50% de chance de ter indício de ilegalidade, chegando aos grandes mercados consumidores, infelizmente”, afirma a pesquisadora do Instituto Escolhas Larissa Rodrigues, doutora em energia pela Universidade de São Paulo (USP).
Agente de segurança revela estrutura da ilegalidade
A estrutura do garimpo ilegal em terras Yanomami é atividade profissional, de “peixe grande”. É o que parece. Segundo revela um agente de segurança pública que atua há anos na região e pede anonimato, faz parte da rotina das picadas abertas pelo garimpo o trânsito de caminhões, tratores, dragas, alojamento para que a extração ocorra livremente.
Estudo iniciado em 2018 pelas associações Hutukara Yanomami e Wanasseduume Ye’kwana, com apoio do Instituto Socioambiental (ISA), indica que a área total destruída pelo garimpo na terra Yanomami cresceu 172,67% entre 2018 e 2021, uma amostra da ocupação clandestina que tomou a região nos últimos anos.
“Por causa do difícil o, os equipamentos costumam chegar aos locais por via aérea (aviões e helicópteros) e fluvial, desmontados”, diz um agente de segurança pública que atua na região e pede anonimato. Quando flagradas pela fiscalização, as estruturas são destruídas pels forças de segurança da Polícia Federal.
Relação ‘simbiótica’. As várias regiões de garimpo no território Yanomami são, muitas vezes, tão próximas das 384 aldeias que, segundo o agente, criou-se uma relação “simbiótica” entre garimpeiros e indígenas. “Não raro, a atividade minerária depende do apoio dos próprios indígenas, que estão lá em uma situação de vulnerabilidade social, sem recursos básicos. Por isso acabam trocando a mão de obra e a conivência por insumos básicos, como comida, armas, bebidas alcoólicas”, revela.
Negacionismo
No fim de janeiro, o governador de Roraima, Antonio Denarium (PP), chegou a defender que os garimpos não são responsáveis pela atual crise sanitária Yanomami e pediu que a União traçasse plano com alternativa de renda para as mais de 20 mil pessoas que agem ilegalmente na extração de ouro na região.
Ao longo do mandato, Denarium, eleito em 2022, sancionou duas leis que beneficiavam a atividade: uma liberava o uso de mercúrio em todos os tipos de garimpo, e a outra proibia que agentes de fiscalização destruíssem equipamentos durante operações nos garimpos. Os dois textos foram considerados ilegais pelo STF.
A comercialização do ouro brasileiro para o exterior só é possível porque o metal com origem ilícita é introduzido no mercado legal por meio de mecanismos de “esquentamento” ou “lavagem”. Embora criminosa, a prática, segundo especialistas, é comum e até amparada pela legislação brasileira.
A Lei 12.844/2013 permite ao vendedor/fornecedor fazer a autodeclaração de origem do mineral garimpado por meio do princípio da boa-fé. Na prática, o que isso quer dizer é que o garimpeiro pode declarar a origem do ouro vendido da lavra que ele quiser, basta que o garimpo tenha registro legal.
O procedimento é feito por meio de nota fiscal, em papel, preenchida a caneta pelo próprio garimpeiro. Não é preciso qualquer checagem ou registro na Agência Nacional de Mineração (ANM), órgão responsável pela fiscalização e regulação das atividades minerárias no país.
O TEMPO fez inúmeras ligações telefônicas para a sede do órgão, em Brasília, no período de 27 de janeiro a 9 de fevereiro, sem sucesso. Enviou também e-mails com questões a serem respondidas sobre a estrutura que mantém na região para coibir o garimpo ilegal. Sem resposta.