Crise

Invasão de território potencializa flagelo do povo Yanomami

Contato com não indígenas leva doença e violência para o meio da floresta; desestruturação da saúde também levou à crise

Por Cristiana Andrade
Publicado em 14 de fevereiro de 2023 | 23:30

Dois fatores ameaçam os Yanomami desde muito antes da demarcação de seu território, há 30 anos, e ajudam a explicar a tragédia que hoje choca o mundo. O cruzamento da invasão dos não indígenas (em especial os garimpeiros) com a desestruturação do sistema de saúde que protegeria os povos originários das doenças nascidas desse convívio cria o cenário de flagelo sanitário e alimentar no qual os Yanomami tentam sobreviver e manter sua cultura.

 

Cerca de 31 mil Yanomami vivem na parte brasileira de cobiçados 9,6 milhões de hectares: o Território Indígena Yanomami (TIY), que ocupa oito municípios de Roraima e Amazonas. Entre 1910 e 1940, eles tiveram os primeiros contatos com não indígenas: missionários católicos e evangélicos, por meio de missões catequizadoras pelo rio Negro, e que acabaram introduzindo doenças e viroses entre indígenas. 

 

Estrada da morte. Na década de 1970, a construção da rodovia Perimetral Norte, ou BR–210, por parte do governo militar, cortou as entranhas do território Yanomami e dizimou quase uma aldeia inteira. “Isso porque grande parte deles nunca tinha tido contato com não indígenas e foram contaminados com sarampo, gripe e malária. O projeto da rodovia foi interrompido, mas naquela época o governo anunciou prováveis ocorrências de ouro, urânio e cassiterita nas serras do território indígena, dando início a um processo intenso de invasão de garimpeiros, na década de 1980”, lembra o geógrafo Estêvão Benfica Senra, pesquisador do Instituto Socioambiental (ISA), organização que se dedica há 30 anos a mapear e estudar o indigenismo brasileiro e mantém um dos maiores bancos de dados sobre os povos originários do país.

 

A rodovia federal transversal, projetada para atender os Estados do Amazonas, Pará, Amapá e Roraima, acabou não vingando: foram implantados somente trechos nos dois últimos Estados, sendo que Roraima tem hoje 411 km de pista. Este é um dos exemplos de descontinuidade e ausência de políticas públicas de ampla proteção, que permitiram a tomada do território por garimpeiros, madeireiros, pessoas do crime organizado, grileiros e fazendeiros, causando um verdadeiro colapso da economia e saúde locais.

 

Entre 1987 e 1992, a corrida por ouro no TIY concentrou em Roraima mais de 40 mil garimpeiros e resultou na morte de 15% da população Yanomami devido a várias doenças. 

 

Memória imunológica.“Os indígenas, principalmente os que não mantêm contato regular com a população não indígena, não têm memória imunológica como a nossa. Por isso muitos deles chegaram a morrer de uma simples conjuntivite”, pontua. 

 

Implantado como projeto-piloto em terras indígenas em 1993, ano seguinte ao da demarcação das Terras Indígenas Yanomami, o Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI-Y) tinha o objetivo de organizar melhor o sistema de saúde, como unidade gestora descentralizada do sistema de atenção à saúde indígena ligado ao Ministério da Saúde, e sanar os prejuízos da corrida do ouro sobre a saúde dos habitantes locais. 

 

Cobiça

 

“O atendimento médico era feito no território Yanomami desde 1970, de forma descentralizada, por agentes da Funai e missões religiosas – que deram início ao contato com as comunidades, introduzindo, inclusive, algumas doenças. Em 1993, o TIY tinha acabado de ser demarcado e vivia uma explosão de garimpeiros na corrida pelo ouro. Com autonomia para executar o orçamento destinado àquele território, os DSEIs aram a ser cobiçados por políticos locais. Foi em 2004 que o processo do colapso do sistema de saúde teve início, e isso impacta diretamente a saúde de toda a população no território”, conta.

 

Segundo o geógrafo, a partir de 2010, o processo de desestruturação dos procedimentos de saúde se acentuou, pois o garimpo ou a impor medo e violência à região, ocupando, por exemplo, as pistas de pouso de aeronaves que levavam os agentes e insumos de saúde para os postos e aldeias.

 

“Nos últimos quatro anos do governo federal, a gestão do DSEI Yanomami foi feita por pessoas sem experiência na área de saúde, o que levou o processo à falência completa”, pontua Estêvão.