Indígenas ajudam a frear desmatamento, mas são os primeiros impactados
Territórios onde vivem os povos originários são uma barreira para conter a degradação do meio ambiente; mas os crimes matam os guardiões da floresta

“Na várzea, não tinha problema nas nossas bananeiras; agora elas crescem miúdas, e não dá nem para vender”, descreve uma mulher de 57 anos, da etnia Ticuna, que vive no Amazonas e foi obrigada a abandonar a área onde morava devido a secas e enchentes nas últimas décadas. “Não sabemos mais quando começa o verão nem o inverno. Na época em que era para o rio estar cheio, ele está seco. O rio está muito diferente, os peixes estão cada vez mais difíceis”, diz outro Ticuna, de 53 anos.
São relatos de quem assiste de perto a um cenário arrasador na Amazônia, comprovado por dados. Só em 2022, a floresta perdeu uma área de vegetação equivalente a 3.000 campos de futebol por dia, 10,5 mil quilômetros quadrados desmatados, recorde da série histórica iniciada em 2008, segundo o Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon). A floresta sofre também com outros tipos de degradação, como seca e incêndios, que afetam quase 40% do território, segundo pesquisa publicada em janeiro na revista “Science”.
Comunidades que vivem da agricultura e da pesca sentem os efeitos das mudanças climáticas globais mais rápido e de forma mais evidente do que quem habita grandes cidades. Ao mesmo tempo, elas são guardiãs da floresta e impedem que o desmatamento na Amazônia e em outros biomas seja maior. Os Territórios Indígenas (TIs) são algumas das principais barreiras contra o desmatamento no país. Em 30 anos, 20,6% da vegetação nativa foi desmatada em terras não indígenas, e as TIs perderam 1%, de acordo com o MapBiomas.
De 2001 a 2021, as florestas que ficam em terras indígenas removeram, juntas, 340 milhões de toneladas de dióxido de carbono (CO²) da atmosfera, o equivalente ao que o Reino Unido, quinta maior economia do mundo, emite anualmente, segundo a ONG internacional World Resources Institute (WRI Brasil). Por outro lado, devido ao desmatamento, as florestas fora da istração indígena foram uma fonte de CO² na atmosfera no mesmo período e liberaram cerca de 270 milhões de toneladas do gás, o que equivale às emissões anuais de combustíveis fósseis de toda a França.
“Os períodos de chuva estão desregulados. É importante pensar em ações de longo prazo para garantir a soberania e a segurança alimentar desses povos e pensar em sementes e locais de plantio de roça que se adaptem às novas realidades”, avalia a coordenadora da agenda indígena do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), Martha Fellows. Também há perda de plantas medicinais. A bióloga e pesquisadora do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) Maiana Lagos avalia que os indígenas são, muitas vezes, invisibilizados nos debates. Ela pesquisou a percepção dos povos Ticuna sobre as mudanças climáticas – os depoimentos que aparecem no início deste texto foram registrados em seus estudos.
Entre seus achados, descobriu que as principais notícias sobre cheias e secas na região do Alto Solimões, no Amazonas, entre 1999 e 2017, sequer citam as consequências para o povo indígena. “As informações também não chegam até eles. Além disso, muitos desses lugares não têm telefone ou internet. O Estado tem que se preocupar em colocar informações dentro dessas comunidades que não têm esse tipo de serviço”, diz. Ela destaca que falta ajuda institucional para ajudar as comunidades a se preparar para eventos extremos.
Os povos indígenas são afetados pela degradação ambiental e, concomitantemente, a floresta sofre com o enfraquecimento dessas comunidades. “Uma vez que elas são fragilizadas, como no caso dos Yanomami, a floresta sofre também, porque você deixa de ter os guardiões desse ecossistema, que alertam quando há invasão, garimpo ilegal e fogo”, analisa a diretora-adjunta de ciência do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), Patrícia Pinho.
Em 2017, o Ipam lançou o aplicativo Alerta Clima Indígena, que emite alertas sobre focos de desmatamento e fogo em territórios indígenas. Ele envia alertas automaticamente por meio de informações de satélite, sem necessidade de sinal de internet, e também é alimentado por informações dos próprios indígenas. “Especialmente os brigadistas indígenas têm utilizado essas informações para combater incêndios florestais, porque, dentro das terras indígenas, o combate é, muitas vezes, complicado pela logística”, detalha a coordenadora da agenda indígena do Ipam, Martha Fellows.
Há anos, o líder Davi Kopenawa Yanomami, um dos maiores nomes da causa indígena no país, denuncia que as mudanças climáticas são evidentes para o seu povo, já que as chuvas, por exemplo, tornaram-se mais imprevisíveis. O climatologista José Marengo, coordenador geral de Pesquisa e Desenvolvimento do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) e membro da Academia Mundial de Ciências, pontua que é claro que algo está ocorrendo com o clima.
“No caso dos Yanomami, além disso, você polui os rios, cada vez mais rasos, com o garimpo. A ação humana está piorando os efeitos das mudanças climáticas”, diz o especialista.