A vida continua

Quando um ato solidário transforma espera em esperança e deixa a vida continuar

Do diagnóstico ao pós-transplante, pacientes relembram jornada marcada por medo, ansiedade e um final feliz

Por Nubya Oliveira
Atualizado em 07 de junho de 2024 | 09:40

Era um domingo de verão, bem no início de janeiro de 2020, quando Laura Cristina Felizberto Pereira, 16, abriu os olhos para viver mais um dia comum. Assim que despertou, a adolescente percebeu que seus pés estavam bem inchados. Imediatamente, a jovem e a mãe dela, Maria da Paixão Godinho - que na época tinha 52 anos - foram para a Unidade de Pronto Atendimento (UPA) mais próxima de onde moravam, em Sabará, na região Metropolitana de Belo Horizonte. Após alguns exames, Laura foi avisada de que havia sido incluída na lista de urgência de internação porque os seus rins já não funcionavam mais.

No mesmo dia, a garota deu entrada no Hospital das Clínicas, na capital mineira, já com quadro de saúde delicado, que foi se agravando rapidamente. “Me disseram que se eu não fosse para o Centro de Terapia Intensiva (CTI), não aria daquele dia. Então, comecei a fazer hemodiálise para retirar o líquido que estava no meu pulmão, e em seguida, me intubaram. Algum tempo depois, quando voltei para o quarto, fiz a biópsia mas não conseguiram ver por qual motivo eu havia perdido meus rins. Acabei sendo transferida de hospital para continuar o tratamento e me colocaram na lista para o transplante renal,” relembra. 

O que Laura não imaginava era que sua jornada por uma vida nova estava apenas começando. Enquanto realizava uma bateria de exames nos rins, a adolescente descobriu que tinha uma alteração no coração que não a deixaria ar o procedimento cirúrgico. O dilema da jovem se duplicou quando o médico a avisou que a partir daquele momento, ela precisaria de dois transplantes: de rins e de coração. Mesmo com o difícil diagnóstico, a garota não perdeu a fé e seguiu fazendo a hemodiálise por anos até conseguir ser transferida para a Santa Casa BH, o maior hospital transplantador de Minas Gerais.

Em 2022, quando chegou ao novo centro de saúde, a paciente ou a ter acompanhamento cardíaco, enquanto também seguia com os tratamentos renais. Até que em janeiro de 2023, ela teve a sua primeira chance de fazer o duplo transplante. A esperança deu lugar ao desespero quando ainda no início do procedimento ela teve uma reação alérgica a um medicamento, o que lhe causou três paradas cardiorrespiratórias. “Foi quando o médico decidiu interromper a minha cirurgia para que eu não perdesse a vida ali. Então, voltei para a hemodiálise e fiquei aguardando a minha nova oportunidade,” recorda. 

Um mês depois, a vida sorriu de novo para Laura. No dia 17 de fevereiro deste ano, ela recebeu uma ligação que a encheu de esperança. Na manhã seguinte, lá estava a jovem fazendo história ao ser a primeira paciente que realizou um transplante duplo, de coração e rins, em Minas. Foram quase 10 horas de cirurgia. “O procedimento dela foi especialmente complexo porque a dificuldade do transplante combinado é maior, uma vez que os procedimentos precisam ser praticamente simultâneos. Mas tudo foi feito da melhor forma possível, e graças a Deus, deu certo,” comemora o coordenador do Programa de Transplantes Cardíacos da Santa Casa BH, Sílvio Amadeu Andrade. 

O transplante foi tão bem-sucedido que, desta vez, quando abriu os olhos, Laura se considerou a pessoa mais feliz do mundo. “Minha vida mudou completamente. Antes, eu precisava parar algumas vezes para respirar enquanto caminhava porque meu coração batia só 18%. Também tinha que limitar a quantidade de água que tomava, agora posso beber à vontade. A Laura de agora está bem melhor do que a de antes. Não consigo explicar a gratidão que sinto pelo meu doador, pela família dele e por toda a equipe médica da Santa Casa BH. O que espero é que outros pacientes tenham a mesma chance que tive, e que as pessoas entendam a importância da doação, porque tem muita gente na fila aguardando por essa felicidade,” finaliza a jovem - que, hoje com 20 anos, sonha em ser uma jogadora de vôlei e cursar a faculdade de psicologia. 

  • Veja a galeria de fotos de Laura Felizberto, sua mãe Maria da Paixão Godinho, e um dos seus médicos, Sílvio Amadeu Andrade - coordenador do Programa de Transplantes Cardíacos da Santa Casa BH: 

Fotos: Rodney Costa/ O Tempo

Fotos: Rodney Costa/ O Tempo

Balanço de vida

Laura integra a lista dos 72 pacientes que receberam um novo coração, em Minas, em 2023. De janeiro a novembro deste ano, a soma total de transplantes de órgãos - incluindo rim, coração, fígado/rim, fígado, rim/pâncreas e pâncreas - chega a 989, segundo a Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (Fhemig). Os números, quando adicionados ao de transplantes de tecidos - córnea, escleras e medula óssea - atingem a marca de 2.141. De 1992, quando o MG Transplantes foi criado, até novembro deste ano, o Estado realizou 49.701 transplantações de tecidos e órgãos. 

“Atualmente, somos o segundo Estado em número de transplantes feitos no país, só perdemos para São Paulo. Neste ano, já conseguimos superar os melhores indicadores que tínhamos, que eram os de 2019, antes da pandemia. Naquele ano, nossa taxa de doação era em torno de 13 doadores por milhão de pessoas. Agora, até o terceiro trimestre de 2023, já estamos com 14.4, e a nossa expectativa é que isso aumente ainda mais até o final deste ano” enfatiza o diretor do MG Transplantes, Omar Lopes Cançado.

Crédito: Rose Braga / Editoria de Arte de O Tempo

Mais coração

Assim como Laura, o assistente istrativo, Ezequias da Costa, 34, também viu a sua vida mudar num instante. Em 2021, ele sofreu uma parada cardíaca enquanto fazia atividades físicas na academia, em Juiz de Fora, na Zona da Mata mineira. De repente. Inesperadamente, uma vez que Ezequias nunca havia tido problemas de coração, mantinha hábitos e alimentação saudáveis, além de exercitar o corpo. Depois de receber atendimento de profissionais da saúde que estavam no local, o assistente foi encaminhado para um hospital, onde descobriram que ele estava com Covid-19, e então o intubaram. 

“Os médicos identificaram uma miocardite e uma fibrose no meu coração, mas não sabiam se era por causa do coronavírus ou por outro motivo. Aí para não ter risco de parar novamente, eles colacaram em mim o cardioversor desfibrilhador implantável (CDI) - um dispositivo que monitoriza constantemente o ritmo cardíaco. Aí tive alta, e fui vivendo de forma estável, tomando as medicações e sendo acompanhado pela equipe médica. Tudo estava controlado até abril deste ano, quando comecei a descompensar novamente. Sentia muito cansaço, falta de ar, dores abdominais, comecei a perder peso e tinha líquido acumulado no meu pulmão,” conta o assistente istrativo.

A partir daquele momento, iniciaram as internações de urgência recorrentes. Ezequias teve outras paradas cardiorrespiratórias e chegou a usar o balão intra-aórtico - um dispositivo utilizado em pessoas com falência cardíaca. Após esgotarem os recursos para mantê-lo vivo, o médico incluiu o nome dele na lista prioritária de transplantes. Em cinco dias, o paciente recebeu a boa notícia da doação. Mas, aí um novo medo nasceu. Ele havia perdido mais de 25 quilos, e estava bem fragilizado a ponto de surgirem dúvidas se ele aguentaria ou não o transplante. Porém, não havia muitas opções. Então, em 10 de agosto de 2023, a cirurgia foi realizada na Santa Casa BH. 

“O procedimento foi um sucesso. Eu falo que foi como um milagre, porque não conseguia me alimentar desde abril, e um dia após o transplante, já acordei com uma vontade imensa de comer. Parece que alguém trocou uma pecinha ali e botou uma nova, que já começou a funcionar de imediato. A gente já começa a ter força e até a pensar melhor. Na verdade, acho que existiram três Ezequias: o de antes da primeira parada cardiorrespiratória - que seguia a vida normal; o que ficou um pouco limitado e mais frágil depois do implante do CDI; e esse agora pós transplante - que voltou a ter qualidade de vida,” ressalta. 

ados quase quatro meses, o objetivo de Ezequias agora é honrar a atitude nobre da família do doador. “Vou fazer isso cuidando da melhor maneira possível desse coração, da minha mente e tomando as medicações certinhas. Porque eles fizeram a parte deles, permitiram ser usados por Deus para me fazer a doação. Agora farei a minha. Sou grato também por ter sido tratado por uma equipe médica tão competente e por ter minha família e amigos ao meu lado, me apoiando de todas as formas. Se estou contando a minha história aqui é por causa de todos eles,” finaliza. 

Ezequias da Costa chegou a perder 25 quilos enquanto aguardava o transplante de coração - Crédito: Arquivo pessoal

Doando vida em vida 

Almerindo Moreira Amaral, 59, está do outro lado da história. Por alguns meses, ele se submeteu a uma bateria de exames para se tornar o doador que devolveria a qualidade de vida para a irmã dele, Alverina Moreira de Souza, 64, que aguardava por um transplante de rim. A luta da gerente comercial começou no ano de 2000, quando foi diagnosticada com nefrite crônica, controlada com medicações até o início de 2022. Mas, então, houve uma piora agressiva do quadro logo após ela ar por um cirurgia para a retirada de um tumor borderline de ovário, que a obrigou a fazer a diálise. Em seguida, foi informada pelo médico de que precisaria fazer o transplante. 

Em maio de 2023, Alverina recebeu a notícia que tanto esperava: a possibilidade da cirurgia acontecer. Mas, logo se frustrou porque o doador não era compatível. No entanto, em meio a decepção, disseram a ela que dois dos seus seis irmãos poderiam doar um dos rins para ela. Depois de vários exames, ficou comprovado que o órgão de Almerindo era a combinação perfeita para a gerente comercial. Então, o dia 23 de agosto de 2023 entrou para a história da família Moreira: a data em que Almerindo deu à irmã uma nova chance de vida. O procedimento foi realizado na Santa Casa BH. “Fiquei feliz em poder ajudar a resolver o problema dela, porque é muito sofrimento para quem tem que fazer a hemodiálise ou a diálise,” afirma o irmão. 

O vendedor também incentiva o ato de solidariedade. “Ainda tem muita muita gente que recusa, às vezes, porque não tem informação, não sabe o que é nem como funciona a doação. Eu queria dizer para essas pessoas para não terem medo, porque o procedimento é tranquilo e seguro. E se é algo que não nos prejudica em nada, por que não doar? A gente consegue viver igualmente bem, sem restrições. Eu continuo fazendo o que sempre fiz e não mudou nada na minha vida. Então, acho que precisamos de um pouco mais de empatia e compaixão para com nosso próximo.” 

Alverina nunca esquecerá o gesto de amor do irmão. “Só não fiquei na fila por muito tempo porque ele se dispôs a doar de boa vontade. Eu falo que ele veio ao mundo para me salvar, porque em nenhum momento voltou atrás. Fiquei em desespero, e meu irmão praticamente me arrastou para o transplante. E foi uma maravilha! Só quem recebe um rim sabe como é poder dormir tranquilo, sem aquela máquina ligada ou ter que ir três vezes por semana ao hospital para fazer hemodiálise. Então, peço às pessoas que têm parente na fila de transplante renal que doem, porque a vida do transplantado muda completamente para melhor,” salienta.  

Almerindo Moreira teve a oportunidade de doar um rim para a sua irmã, Alverina Moreira - Foto: Arquivo pessoal