Histórias

JK, Maletta, Mariana: 5 prédios que há décadas guardam segredos e tradição em BH

Ao longo dos anos, cada um atraiu um segmento diferente, e comerciantes fizeram a vida em seus corredores

Por Gabriel Rodrigues
Publicado em 24 de março de 2024 | 06:00

Nas noites de fim de semana, uma multidão de jovens a sob as grades de ferro erguidas na portaria da galeria São Vicente, na avenida Amazonas, bem ao lado da praça Raul Soares, no centro de Belo Horizonte. Antes de subir a rampa que leva aos bares com ares de Mercado Novo no segundo andar, fotografam a placa do Chaveiro Ideal, tão antiga que exibe um número de telefone fixo com somente sete dígitos. Sem ter redes sociais próprias, é assim que o chaveiro Carlos Alberto Franca Montes, de 80 anos, foi parar diversas vezes no Instagram. “Um dia, um rapaz estava me filmando andar pelo corredor”, conta.

 

Carlos Alberto comanda o Chaveiro Ideal ao lado do filho, Luigi (Daniel de Cerqueira/O TEMPO)

 

Ele é guardião de tradições da galeria, um dos prédios icônicos de BH que são redescobertos geração após geração, reavivados por novos empreendimentos, mas que continuam fiéis a alguns segmentos, que se tornaram sua vocação. São a galeria São Vicente, com suas lojas de máquina de costura; o JK, com corredores de agências de viagem e comércio de manequins; o Maletta, com seu gosto pelos sebos e outras lojas de usados; o Mariana, com mais de uma dezena de andares de roupas de festa, e o Edifício Central, que já foi polo de fábricas de carimbo.

 

 

 

Ao lado das lojas de máquinas de costura, Carlos Alberto é o único chaveiro da São Vicente, inaugurada em 1959. Não frequenta os bares do segundo andar, mas tornou-se amigo dos donos — interrompe a conversa com a reportagem para receber uma linguiça defumada para um deles. Sem educação formal completa na juventude, começou a trabalhar com chaves por necessidade. “Só sei que me tornei chaveiro”.

 

Hoje, é seu filho, Luigi, de 55 anos, que vai à casa dos clientes de moto. Por décadas, as visitas eram papel de Carlos. “Você vai da favela à casa de políticos importantes”. Ele conta, por exemplo, que conheceu pessoalmente Antônio Luciano Pereira Filho, um dos homens mais ricos de Minas Gerais, morto em 1990 e, diz a mitologia municipal, dono de grande parte dos prédios da cidade. “Ele tinha uma onça no Hotel Financial e outra na casa dele”, rememora.

 

Galeria São Vicente foi redescoberta por novas gerações nos últimos anos (Daniel de Cerqueira/O TEMPO)

 

Outra família trabalha a poucos metros do chaveiro, entre fileiras de máquinas de costura. A gerente Renata Duarte, 59, divide a loja de 30 anos com o irmão e com o sobrinho, Rafael. Na parede, está uma foto do irmão na China, a convite de uma fábrica, e um certificado escrito em chinês. “Minha vó costurava, minha mãe costurava, meu irmão sabe ar linha na máquina. Eu não. Sou vendedora”, diz Renata. O barulho incessante do trânsito enche a galeria o dia todo e a cansa. Ela sonha com um lugar maior fora da galeria, mas entende que a São Vicente é o centro gravitacional desse mercado na cidade, e assim deve permanecer: “todo mundo vem aqui”.

 

Com 23 anos, Rafael Campos, sobrinho de Renata, gosta de dizer que nasceu e cresceu na Galeria São Vicente — e pretende levar o legado da família adiante. “A galeria é uma comunidade, uma família. Às vezes, a gente a mais tempo no trabalho do que em casa. A costura é uma prática milenar, creio que ainda vai se perpetuar por muito tempo, porque está no nosso cotidiano”, diz.

 

Rafael Campos está à frente do negócio da família, na Galeria São Vicente, junto com o pai e com a tia (Daniel de Cerqueira/O TEMPO)

 

Veja todos os prédios visitados pela reportagem:

 

 

De revolução de Niemeyer, JK tornou-se casa de manequins

 

Antes de erguerem Brasília, Oscar Niemeyer e Juscelino Kubitschek, então governador de Minas Gerais, tentaram revolucionar a realidade imobiliária de Belo Horizonte com o Conjunto JK. Os paredões de janelas em frente à praça Raul Soares deveriam abrigar, além de apartamentos residenciais, um hotel, um museu, comércio e lazer para os moradores e visitantes. Construído da década de 50 até os anos 70, e depois de sair do controle de Niemeyer, o projeto não se concretizou. Quem eia pelos corredores escuros com várias lojas fechadas do térreo consegue perceber.

 

No térreo, além dos 5.000 moradores que vivem nas torres residenciais, um exército de manequins povoa o JK. Com as décadas, o ponto se tornou um centro de produtos para lojas de roupa. As placas são antigas, mas as vitrines assistem a mudanças graduais. “Antes, era só manequim feminino e masculino. Agora, tem o manequim ‘comum’, o bombado, o magro, o plus size, o fitness... Como a sociedade vai mudando, as coisas também vão”, reflete o dono de uma das lojas, que a istra ao lado da mãe, Daniel Fraga, 43.

 

Lojas de manequins adaptaram-se a cores, tamanhos e formatos diferentes ao longo dos anos no JK (Daniel de Cerqueira/O TEMPO)

 

Os manequins expostos lado a lado na loja têm barriga mais volumosa ou menos, seios de diferentes tamanhos, variam de cor, material e podem ter ou não rosto, com olhos esbugalhados em tons de amarelo ao azul. Eles não só atendem a distintos formatos de corpo, mas a paixões: “vendemos para lojas de times. Para o Galo, só pode ser manequim preto. Para o Cruzeiro, branco. O América leva preto e leva branco, não tem essa questão toda”, lista Fraga.

 

Há décadas mirando a rua pela vitrine da loja, ele sonha que o JK e pelo mesmo processo de atração de novos negócios que movimenta a Galeria São Vicente e o Mercado Novo, a poucos quarteirões de distância. Por ora, não há sinais de que isso ocorrerá, na perspectiva de outra veterana do ramo dos manequins, Miriam Aparecida Costa, 64, no JK desde 1995. “A tendência é piorar, porque as pessoas entram aqui e veem um mundo de lojas fechadas”, reflete.

 

Como outros comerciantes, ela reclama de abandono da istração, que tem a mesma síndica há quatro décadas. O gerente do condomínio, Manoel Freitas, justifica que muitas lojas fecharam durante a pandemia de Covid-19 e que o tombamento do conjunto, em 2022, torna o processo de reformas mais burocrático.

 

Corredores do Conjunto JK tem várias lojas fechadas. (Daniel de Cerqueira/O TEMPO)

 

Antes das lojas de manequim, chegaram as agências de viagem — ainda hoje, o JK é um terminal rodoviário com ares de improviso e não tem sequer banheiro público para os ageiros. Em 1990, a empresária Nalzira Braga, de 85 anos, abriu a Decálogo Turismo, especializada em pacotes, especialmente para Porto Seguro, onde ela tem um hotel. “Eu viajava muito e abri a empresa da noite para o dia”, diz. Além dela, seus seis filhos estão envolvidos no negócio. “O JK não é bem cuidado, mas é um bom ponto. Tem que clarear essa caverna”, reclama, com uma ponta de esperança: “nada acaba. Diminui e volta. Sempre foi assim”.

 

Nalzira Braga, fundadora da Decálogo Turismo, assiste às mudanças do JK há décadas (Daniel de Cerqueira/O TEMPO)

 

Edifício Mariana é casa das noivas, de suas filhas e netas

 

Corredores do Edifício Mariana guardam centenas de lojas de roupa de festa

 

Para ir a um dos 12 andares de lojas de roupas de festa do Edifício Mariana, na avenida Afonso Pena, é necessário aguardar o elevador em uma fila única marcada com fita amarela no piso. Em um dos quatro elevadores, a ascensorista Elza Aparecida, 56, a seis horas por dia transportando noivas, noivos e debutantes para cima e para baixo. “Entrei em 1989 como faxineira. O único lugar na minha carteira de trabalho é aqui”. A conversa com os ageiros se torna uma amizade de poucos minutos por dia, o tempo de eles embarcarem e saírem. Trabalhando no centro do universo dos casamentos, ela própria não se casou: “nunca experimentei nenhum vestido de noiva aqui”.

 

Elevadores do Edifício Mariana mantêm ascensorista

 

Colocando a cabeça no parapeito do vão no meio dos corredores do Mariana e olhando para cima ou para baixo, é possível ver dezenas de fileiras de lojas nas duas direções. São 272 unidades, das quais 260 estão ocupadas. No quarto andar, está uma das mais antigas do ramo das festas, a Cida Noivas. “Eu não tenho filhos, então as noivas viraram filhas para mim”, diz a proprietária, Cida Cortez, 65.

 

Ela chegou ao edifício em 1997, quando ele ainda não era a atual referência do ramo. Com o tempo, lojas similares chegaram por todos os lados — muitas delas fecharam e foram substituídas por novas. A agem do tempo mudou a moda dos vestidos, dos bufantes aos mais lisos, porém não o gosto de Cida pelo trabalho, diz ela: “tem que amar”.

 

Cida Noivas é uma das referências do Edifício Mariana

 

No Edifício Central, carimbos tentam sobreviver à digitalização

 

Nas décadas antes da ascensão dos documentos digitais, abrir uma fábrica de carimbos parecia tão rentável que diversos funcionários da loja de Gener Alves Pereira, 79, iniciaram as suas próprias no mesmo prédio, o Edifício Central, ao lado da praça da Estação. Hoje, restam a dele e outras duas.

 

Edifício Central foi foco de lojas de carimbo, hoje em redução

 

Na varanda do primeiro piso, a poucos metros do bar Baixaria, que leva um novo público ao prédio, Gener produz os carimbos na própria loja, ao lado da filha, Thaiara, 36. Ele chegou a ter oito funcionários, mas agora as operações resumem-se aos dois. “O mercado está escasso”, diz Gener, com as pontas dos dedos marcadas de tinta. Hoje, seu público concentra-se em profissionais liberais, professores e cartórios. Alguns trabalhos, ele prefere recusar: “já pediram bobagens de políticas, carimbos ofendendo candidatos. Isso não faço”.

 

No andar de baixo, Sebastião de Assis Nascimento, 62, costumava ter duas lojas, e agora mantém só uma, onde vende carimbos e tem uma lan house — que tinha oito computadores em seus tempos áureos, e tem quatro atualmente. “É R$ 5 a hora para usar o computador. A maioria das pessoas só quer fazer uma impressão”, diz. “As coisas foram mudando”. Ele também quer mudar: seu plano é continuar na loja pelos próximos cinco anos e, depois disso, escapar da vida urbana para viver no campo.

 

Escadas rolantes do Edifício Central paradas ao lado da escadaria principal do prédio

 

 

A reciclagem cultural do Maletta sobrevive

 

A história do Conjunto Arcângelo Maletta começou com destruição: ele foi erguido sobre os escombros do Grande Hotel, um dos principais edifícios de Belo Horizonte, que abrigou gigantes da arte nacional, como Oswald e Mário de Andrade e Tarsila do Amaral. Mas o Maletta — que leva o nome de um imigrante italiano que istrou o antigo hotel — contornou essa história para se tornar um centro de “reciclagem cultural”, casa de sebos, brechós e lojas de vinis usados.

 

Maletta é casa de sebos e brechós há décadas

 

Ao longo das décadas, ele teve momentos de efervescência seguidos por esvaziamento. “O ambiente é um ‘decadente chique’. O Maletta esvazia e depois volta”, reflete Oséias Ferraz, dono de um dos sebos mais antigos em funcionamento no Edifício, o Crisálida, aberto em 1999. Seu acervo de 220 mil livros começou com 1.300 que ele levou de casa, e vai desde best-sellers que continuam a vender — como os sete volumes da saga “Harry Potter” — a raridades, como a primeira edição de “Macunaíma”, de Mário de Andrade, avaliada em R$ 27 mil. “Vim para o Maletta porque tinha tradição de ser um ponto cultural e era mais barato”. Ele é uma das pessoas à frente de um movimento que tenta pensar em ações para reinserir o edifício no imaginário — e nos gastos — dos belo-horizontinos.

 

Oséias Ferraz está instalado no Maletta desde o final dos anos 90

 

Mais recente, aberto em 2013, o sebo 7ª Arte é comandado por Fernanda Cavalcante, 34. “A procura é alta. Minha teoria é que o público está querendo um alívio, um refúgio das telas. Já vendi livro para o Fernando Haddad, mandei com uma cartinha”, diz, orgulhosa, mostrando uma mensagem do ministro da Fazenda agradecendo pelo envio do livro “O Problema da Escravidão na Cultura Ocidental”, do historiador norte-americano David Brion Davis.

 

Ela interrompe a conversa para atender um cliente de longa data, um senhor que mora em um prédio vizinho e frequenta o Maletta há anos. Na saída do edifício, a reportagem a por grupos de jovens. Como nos demais prédios visitados ao longo do dia, ali repete-se a variação entre o novo e o antigo, que mantém, mas também renova, as tradições do centro de BH.