Uma criança com os pés descalços no barro formado por água de chuva e de esgoto em uma comunidade sem saneamento básico e pavimentação. A cena registrada na imagem desta página é corriqueira em comunidades de baixa renda e tem mais implicações do que a ingenuidade do momento retratado pode demonstrar. Ali, nos primeiros os da caminhada da vida, aquela criança tem muito mais partes do percurso já definidas do que pode imaginar. Ela ainda não tem como saber, mas estudos comprovam que viver em uma casa sem o a saneamento básico, como a dela, pode afetar a capacidade de aprendizado e, em última instância, determinar um “teto” de crescimento profissional.
Um estudo feito pelo Instituto Trata Brasil, com base em dados do Ministério da Educação, comparou o desempenho escolar de alunos residentes em casas com o à água e a banheiro exclusivo para a família com os resultados de quem não tem esses “privilégios” e comprovou que há uma diferença de notas entre eles. No último ano do ensino médio, a nota em português e matemática de quem vive em áreas sem água tratada foi 8,4% menor do que a daqueles que tinham o. Entre os que não tinham banheiro, o resultado médio foi 11,3% menor que o dos demais alunos.
“A falta de saneamento básico gera um impacto no desenvolvimento econômico social daquela localidade porque as pessoas ficam mais doentes, seguem mais tempo com atividades corriqueiras e não conseguem desenvolver as suas atividades do ponto de vista estudantil e profissional”, explica a presidente do Instituto Trata Brasil, Luana Pretto. Como resultado das dificuldades acadêmicas, os jovens em vulnerabilidade apresentam um atraso de quase dois anos a mais do que os demais para completar os estudos, conclui o estudo recém-divulgado pelo instituto.
A falta de saneamento não é o único percalço de quem não tem boas condições de moradia. A vulnerabilidade social afeta de diferentes maneiras o o ao ensino em cidades da região metropolitana, indicam dados do Plano Metropolitano de Habitação de Interesse Social da Região Metropolitana de Belo Horizonte (PMHIS). Enquanto em BH o percentual de pessoas privadas de educação é de 12%, em cidades com pior colocação no ranking nacional do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) – a capital está na 20ª posição no país –, esse valor dobra. Ribeirão das Neves, por exemplo, como o 2.232º IDH nacional, tem 20% dos moradores sem o completo ao ensino. Na região metropolitana, Nova União (2.846º) tem o pior resultado: mais de um terço da população (36%) sem condições de estudar.
De acordo com a professora da Estácio BH, doutora em educação e psicopedagoga Flávia Alcântara, a vida fora das instituições de ensino conta muito para o sucesso escolar. “Viver em situação de instabilidade, com falta de segurança, pode fazer com que essas crianças e jovens sofram na escola. Se a casa não tem condições mínimas de conforto, como será o acolhimento desse estudante? É um imperativo que muitas vezes pode inibir, precarizar o desenvolvimento escolar”, diz. Ela também lembra que a estrutura das escolas pode ser diferente em locais mais afastados, que têm menos recursos para investir.
A presidente do Sindicato dos Professores de Minas Gerais (Sinpro), Valéria Morato, concorda que não basta esforço para se ter um bom desempenho. “Como ter eficiência sem condições elementares de sobrevivência? Essas crianças e professores caminham longos caminhos para chegar à escola, precisam buscar água para beber. A questão não é receber uma educação deficiente. A questão é a educação possível dentro das condições dadas”, pondera ela.
O cansaço também compromete o aprendizado, pontua a professora Andreia dos Santos, do curso de ciências sociais da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). “Isso ocorre apesar do compromisso dos alunos com o processo de educação. Estamos falando de estudantes que querem absorver o máximo que podem, mas lidam com rotinas exaustivas. Entre trabalho, estudo e deslocamentos, há alunos que ocupam 20 horas do dia”, ressalta.
A necessidade de trabalhar e estudar agrava o problema e distancia alunos de diferentes classes sociais, acrescenta Andreia. “Muitas vezes, a escolha da escola está mais relacionada ao local de trabalho do que à moradia. A maioria desses alunos chega muito cansada e, muitas vezes, atrasada. Não têm fim de semana ou lazer, fundamentais para o desenvolvimento acadêmico”, completa.
Para calcular a relação entre a vulnerabilidade social e o o ao ensino, o PMHIS considera o Índice de Pobreza Multidimensional (IPM) e analisa quatro fatores: adultos sem ensino fundamental completo, responsável analfabeto, percentual de alunos em defasagem escolar e crianças e adolescentes de 6 a 17 anos fora da escola. O estudo também indica que cidades mais distantes de Belo Horizonte possuem piores índices. Enquanto Nova Lima (com o 17º melhor IDH nacional) possui 11% da população privada de educação, Esmeraldas (2.642º) tem 22%.
Condições de estudo desiguais geram oportunidades profissionais também diferentes. Estudo do Instituto Trata Brasil mostra que estudantes residentes de áreas sem saneamento básico tendem a ter uma renda média 46,1% menor do que aqueles que vieram de uma origem financeira mais confortável.
As dificuldades de quem vive em regiões com menos infraestrutura e mais distantes são muito sentidas por quem se prepara para seguir uma carreira. O local onde se vive pode determinar futuramente até se aquele profissional formado vai atuar na área de formação ou não.
A advogada Bianca Izabela dos Reis, 24, para se desenvolver na carreira, precisou migrar de Igarapé para BH. Ela saiu da casa dos pais e, durante parte da graduação, morou em um quarto alugado em uma região nobre da capital, perto da faculdade onde estudava. “Era um quartinho em que não cabia um guarda-roupa nem uma escrivaninha. E eu pagava caro. Minha bolsa-estágio ia toda para o aluguel”, diz. Antes da mudança, ela tentou conciliar uma vida de estágio e estudo em BH e residência em Igarapé. Mas a rotina de deslocamento entre as cidades era exaustiva e começou a prejudicar seu desempenho. “Acordava às 5h e chegava em casa depois da meia-noite. Eram menos de cinco horas de sono por noite. Meu corpo não estava ando. Se eu não me mudasse para BH, acabaria reprovada em alguma matéria”, disse.
*Essa matéria compõe o caderno especial Habitar, com reportagem de Gabriel Rezende, Gabriel Rodrigues, José Vítor Camilo, Juliana Siqueira, Raissa Oliveira, Raquel Penaforte e Tatiana Lagôa; edição de Karlon Aredes e fotos de Alex de Jesus, Fred Magno, Thomás Santos e Flávio Tavares.