O déficit habitacional do Estado é medido com base na pesquisa da Fundação João Pinheiro (FJP) desde 1995. Porém, a falta de moradias para a população e a consequente aglomeração de pessoas em áreas sem estruturas básicas vêm de muito antes. Quando Belo Horizonte foi planejada, nas últimas décadas do século XIX, para ser a capital mineira, a população que vivia no então Curral del Rei teve que dar espaço para o desenvolvimento do projeto. Já se aram 126 anos e, de lá para cá, a “periferização” cresceu na capital e seguiu para as cidades do entorno. Agora, são pelo menos 346,4 mil residências em 529 favelas, segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Se unidas, o número de moradias em aglomerados é superior à população de 846 cidades mineiras, ou 99,17% do Estado.
Somente na capital mineira, estima-se que existam 125 mil famílias vivendo nessas áreas. Gerente de incidência em políticas públicas da Habitat Brasil, Raquel Ludermir explica que o surgimento das ocupações ilegais no Brasil está diretamente ligado à Lei de Terras, promulgada em 1850, que definiu que só teria o a terras quem pudesse comprá-las. “A terra vira mercadoria no momento em que as pessoas estavam sendo libertas da escravidão. Sem conseguir ter o a imóveis e terrenos, elas partem para as ocupações informais, hoje conhecidas como ‘favelas’. Foi só na Constituição de 1988 que surgiu a ‘função social da propriedade’. Portanto, foi mais de um século de negligência, e a população se virando como podia, construindo suas moradias. E isso não parou hoje, pois, desde 1988 até agora, tivemos investimento alto na moradia, mas existe uma dívida histórica que não foi sanada”, diz.
Com registros de ocupação já em 1900, a Pedreira Prado Lopes (PPL), na região Noroeste de BH, é apontada como a favela mais antiga da cidade. A historiadora Michele Arroyo conta que, na verdade, a história da comunidade remonta a um período anterior à construção da capital, já que ali era uma fazenda do Curral del Rei. Quando o governo de Minas instituiu a Comissão Construtora da Nova Capital, essa e diversas outras fazendas foram desapropriadas, e a região da PPL se tornou uma das cinco pedreiras de onde foram retiradas as rochas usadas para construir estruturas como os alicerces dos edifícios públicos e a canalização dos córregos.
“Naquela fazenda já existia um núcleo de escravizados que ali trabalhava e que, com a desapropriação da área, assumiu a extração de pedras. E ali se constituiu um núcleo de moradia completamente precário, mas que se tornou um território de resistência da comunidade negra, uma espécie de quilombo urbano”, conta.
ado mais de um século, já sem espaço para expandir dentro do território de BH, a população mais pobre ou a ser “empurrada” para cidades da região metropolitana, onde foram formadas novas favelas. Segundo o Censo do IBGE de 2022, alguns municípios da Região Metropolitana de Belo Horizonte apresentam mais da metade dos seus domicílios em Núcleos Urbanos Informais, como Rio Acima (63,69%), Confins (57,37%), Raposos (53,15%) e Santa Luzia (46,22%). “Já na década de 1940, BH expulsa do núcleo urbano toda a parte destinada às indústrias, que vão para Contagem e Betim. Isso traz uma mudança na característica da mão de obra e na reorganização social da classe trabalhadora. Sem uma área rural desde 1996, a capital é extremamente adensada, com poucos espaços para atendimento à demanda habitacional”, completa Michele.
Minas Gerais é o sexto Estado do país com mais favelas. São 653 comunidades, 5,3% do total registrado no Brasil – sendo mais da metade delas em cidades da região metropolitana de Belo Horizonte. Segundo o IBGE, 739.932 pessoas vivem em aglomerados no Estado. Na capital, há 540.561 residentes de comunidades urbanas. Dos 853 municípios mineiros, 59 continham ao menos uma favela em 2022.
Apesar de a Pedreira Prado Lopes ser oficialmente a favela mais antiga ainda existente em Belo Horizonte, ela não foi a primeira ocupação irregular urbana da capital. Antes mesmo de seu surgimento, existia uma comunidade conhecida como “Alto da Estação”, que ficava logo acima da estação Central, hoje no centro da cidade. Nesse local, está localizada hoje a rua Sapucaí, grande reduto da vida noturna da capital mineira, que, inclusive, a neste momento por uma revitalização. A obra extinguirá o trânsito de veículos no local, valorizando o corredor cultural e gastronômico da rua.
A historiadora Michele Arroyo explica que a área foi a primeira a receber a população carente, que chegava de trem de outros locais de Minas e construía ali pequenos barracos. “Já nos anos 1920, tivemos um primeiro movimento da istração da cidade de tirar as pessoas dessa região, por ser a porta de entrada da cidade. E muitas dessas famílias, desses trabalhadores foram para a Pedreira Prado Lopes (PPL), que já era um núcleo residencial de resistência dessas pessoas de baixa renda”, afirma.
*Essa matéria compõe o caderno especial Habitar, com reportagem de Gabriel Rezende, Gabriel Rodrigues, José Vítor Camilo, Juliana Siqueira, Raissa Oliveira, Raquel Penaforte e Tatiana Lagôa; edição de Karlon Aredes e fotos de Alex de Jesus, Fred Magno, Thomás Santos e Flávio Tavares.