“Essa escada aqui é de madeira especial, fui eu que fiz”. Com orgulho, Sebastião Delmaschio*, um marceneiro aposentado de 91 anos, mostra cada um dos cantinhos da casa, onde sua mão, segundo ele, “ou em tudo”. O imóvel de dois pavimentos no bairro Jardim América, na região Oeste de Belo Horizonte, onde ele e a esposa, Sebastiana Delmaschio, de 88, criaram os sete filhos, foi adquirido em 1969, quando era apenas um barracão. Ao longo de 55 anos, a compra de casas ao lado possibilitou a ampliação do lar, que, agora, o casal se vê forçado a abandonar para abrir o caminho para uma obra de construção de uma rua.
O despejo de famílias – seja para obras de infraestrutura ou em função de conflitos fundiários urbanos – é um desafio para o poder público ao criar uma demanda por moradias em outras áreas. Pesquisa da Habitat Brasil mostra que, entre 2020 e maio de 2022, foram despejadas mais de 31 mil famílias, sendo 1.100 em Minas Gerais. Segundo a gerente de incidência em políticas públicas da Habitat Brasil, Raquel Ludermir, os dados não incluem pessoas que são retiradas de casa em função do não pagamento do aluguel. “Focamos casos coletivos de despejo, seja por reintegração de posse, quando um suposto proprietário retira famílias que estão há anos em certos locais, seja quando o poder público entra com ações na Justiça para realizar obras de infraestrutura”, diz.
Em relação à situação do casal Sebastião e Sebastiana, a Prefeitura de BH explica que o despejo é importante para concluir a obra aprovada no Orçamento Participativo de 2013 para “requalificação da conexão viária” da Vila Ventosa. “As intervenções realizadas vão promover abertura de vias, novos os e ampliação de ofertas de serviços públicos na região”, diz em nota.
“Durão” – como a madeira da escada em que ele deu tapas enquanto exibia quase como sua obra-prima –, Sebastião segurou a lágrima que quis escorrer quando foi perguntado sobre a perda das lembranças ali vividas. “Eu fico com bastante sentimento de saber que eu vou ter que sair daqui e não vou ter esse lugar mais. E vou viver onde?”, questionou.
A proposta apresentada pela PBH, segundo a família, é de pouco mais de R$ 300 mil. “Eu estou achando muito pequenininha a oferta deles, não consigo comprar nem um apartamento. Mas a minha esposa não pode subir escada, tem risco de acidente por causa da demência”, diz Sebastião. Pesquisa da plataforma imobiliária Loft mostra que o valor médio de um imóvel na região é de R$ 393,3 mil. Viviane Delmaschio, filha do casal, conta que a mudança colocaria em risco os pais, já que, com todos os filhos morando em bairros próximos, eles conseguem revezar para dormir, cada dia um, com os idosos. “Fizemos um laudo com um engenheiro que indicava um valor um pouco mais alto”, diz.
Enquanto uns têm pesadelos com a perda do lar, outros sonham com o dia da mudança. É o caso da maioria dos moradores da Vila da Luz, na região Nordeste de Belo Horizonte. A área foi erguida entre duas pistas do Anel Rodoviário, na saída para Vitória. Os moradores de lá esperam que a duplicação da BR381 avance e que eles sejam removidos e indenizados. Maria Neuza, 65, vive na área há 20 anos e garante que a vontade de sair de lá é quase unânime. “Quem gostaria de ficar num lugar em que você não tem privacidade nenhuma? Você sai na porta e é uma BR”, argumenta. “Para ir à padaria, tem que atravessar a rodovia; para fazer compra, sem carro é quase impossível. A gente fica até meio atormentada da cabeça, de tanto barulho, dia e noite”, desabafa.
Sandra Souza, 45, também aguarda com apreensão enquanto vive na comunidade. “Eu queria que saísse (o despejo) para, na hora que eu morrer, deixar uma casa para os meus filhos. Eu não queria deixar isso aqui para você, né?”, disse a mulher enquanto olhava para o filho mais novo, de 9 anos, que assistia à entrevista. José Aparecido da Silva, 67, que é dono de um bar no coração da comunidade, está aberto para qualquer negociação, mas já perdeu as esperanças. “Falaram que até o fim do ano aconteceria o despejo, mas nós já estamos em outubro, né?”, diz.
*Após a conclusão dessa reportagem, o senhor Sebastião Delmaschio faleceu (em 07/11). A filha dele, Viviane Delmaschio, informou que o imbróglio persiste.
Segundo a Companhia Urbanizadora de Belo Horizonte, houve um avanço na quantidade de ocupações formalizadas e incluídas no Plano Diretor da cidade. Atualmente, estas áreas, antes ociosas, que são ocupadas por grupos sem moradia abrigam mais de 20 mil pessoas.
Mas o processo de ocupação não é tão simples: “Vários desses locais de moradia encontram-se em áreas com ausência de infraestrutura básica e sob conflitos fundiários em curso”, explica a Urbel. Mesmo com os conflitos, Edinho Vieira, coordenador nacional do Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB), faz um balanço positivo da atuação dos grupos. “As ocupações são uma parte fundamental nos dias de hoje, pois existe uma insuficiência do poder público e dos programas habitacionais”, afirma. Ele explica que o movimento deixa evidente a especulação imobiliária como alavanca do déficit habitacional.
Resposta. Questionado sobre o despejo das famílias da Vila da Luz, o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) disse que a comunidade deverá ser contemplada na segunda etapa do programa de duplicação da BR-381 em MG. “No momento, as ações de reassentamento nessas localidades estão na fase de planejamento”, disse o órgão.
*Essa matéria compõe o caderno especial Habitar, com reportagem de Gabriel Rezende, Gabriel Rodrigues, José Vítor Camilo, Juliana Siqueira, Raissa Oliveira, Raquel Penaforte e Tatiana Lagôa; edição de Karlon Aredes e fotos de Alex de Jesus, Fred Magno, Thomás Santos e Flávio Tavares.