DOENÇAS RARAS

Sem médicos e pesquisas, tratamentos são milionários para famílias

O Brasil tem cerca de 400 geneticistas, sendo 28 com atuação pelo SUS em Minas Gerais, o que força busca de socorro no exterior a preços impagáveis

 

A distância entre os aeroportos mais próximos de São Domingos do Prata, no Vale do Aço, e o distrito de Encino, em Los Angeles, na Califórnia (EUA), é de 9.958,79 km. O tempo de voo estimado para o trajeto é de aproximadamente 12 horas e 12 minutos. Se a bordo desse avião estiver Júlia Pontes Domingues, a Julinha, 4, a viagem será rumo a um sonho raro: ter o a uma terapia genética que pode lhe proporcionar mais qualidade de vida e, quem sabe, a chance de chegar à vida adulta. O preço da viagem, no entanto, é exorbitante: US$ 3 milhões, ou R$ 18 milhões, na cotação atual.

É que Julinha foi diagnosticada com lipofuscinose ceroide neuronal tipo 7 (CLN7), uma doença genética tão rara que a chance de acometer um nascimento é de apenas 0,001% no mundo. Em poucos anos, a menina perderá a visão, a fala e as habilidades motoras, como sentar e andar, tendo baixíssimas chances de sobreviver à adolescência. Por isso, a viagem aos Estados Unidos é decisiva: não há cura nem tratamento para a CLN7, e o único estudo sobre a doença em andamento ocorre no laboratório Elpida Therapeutics, na Califórnia.

“A doença já está comprometendo as capacidades motoras da Júlia. Ela ou a ter regressão, babar muito e fazer necessidades nas calças sem querer, além da dificuldade para andar. Queremos o melhor para ela”, conta, aflito, o pai, Alan Domingues.

Falta informação para diagnóstico

A falta de familiaridade dos profissionais da saúde com doenças raras trava diagnósticos. “Eu recebo crianças do Brasil inteiro que têm diagnósticos errados”, conta o neurocirurgião pediátrico Alexandre Canheu, com atuação no Sul do país.

Um deles foi um menino mineiro, de 1 ano, que chegou com diagnóstico de com plagiocefalia posicional, alteração no formato da cabeça, que não ameaça a vida. Mas ele tinha cranioestenose do tipo lambdoide, que afeta uma de cada 50 mil pessoas, impede o desenvolvimento do crânio e pode matar sem cirurgia. “No Brasil, uns 200 médicos entendem essa doença”, diz. O Ministério da Saúde ite, em nota, que é preciso capacitar várias “categorias profissionais” para agilizar o tratamento pelo SUS. 

A pesquisa é inovadora e testará as maiores doses de terapia genética já istradas em humanos, na tentativa de frear o avanço da doença. Depois do sucesso dos testes em ratos e camundongos, o próximo o é o experimento em pelo menos quatro crianças vivendo com CLN7 pelo mundo – com sorte, incluindo Julinha. No entanto, o estudo não recebe financiamento público ou da indústria farmacêutica, o que obriga as famílias a arcar com o custo milionário da produção científica.

Segundo o presidente da Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma), Renato Alencar Porto, os chamados “medicamentos órfãos” são aqueles que não interessam às empresas por exigirem altos custos de produção e atenderem a uma pequena parcela da população. Cerca de 2% das doenças raras têm medicamentos que não recebem incentivo financeiro para produção e distribuição, conforme o Ministério da Saúde.

“Um grande gargalo é o fato de o Brasil não realizar pesquisa clínica, como acontece nos Estados Unidos e no Japão, por exemplo, o que obriga pacientes a buscar tratamento fora do país, gerando gastos extremamente injustos”, pondera Alencar Porto. “Quando falamos de doenças raras, a ciência precisa ser colaborativa. Uma investigação que falha na Europa pode ser reaproveitada por um grupo no Brasil e, assim, até que se chegue a um resultado eficaz”, acrescenta.

A família de Dudu, o Eduardo Diego Amaral, 2, também busca ajuda no exterior. Ele é o primeiro brasileiro diagnosticado com paralisia espástica hereditária tipo 50 (SPG50) – um distúrbio neurológico degenerativo que, ao longo dos anos, pode levá-lo ao estado vegetativo.

Os pais já levaram o menino até Massachusetts, nos Estados Unidos, para conhecer o pai de uma criança com a mesma doença, que criou um medicamento. Com a esperança de iniciar os testes em março, os brasileiros estão rifando um carro e fazendo vaquinha em busca de R$ 18 milhões: “É uma angústia. Ele perde neurônios todos os dias. Nós acordamos e vamos dormir pensando nesse estudo”, desabafa.

Parte do problema para se ter um avanço na pesquisa no Brasil está na falta de geneticistas e cientistas interessados em terapias genéticas, que atualmente representam a principal esperança no tratamento de cerca de 80% das doenças raras. Um estudo feito pela Interfarma mostra que a maior parte das doenças genéticas preenchem critérios para serem classificadas como raras, em função da prevalência de 50 a 65 casos para cada 100 mil pessoas.

Conforme o médico geneticista Roberto Giugliani, uma das principais referências na área no país, são cerca de 400 médicos geneticistas no Brasil, a maioria concentrada nas regiões Sul e Sudeste. Em Minas Gerais, dados da Secretaria de Estado de Saúde (SES-MG), obtidos via Lei de o à Informação (LAI), mostraram que 28 geneticistas atuavam na rede SUS-MG em 2024, o equivalente a um especialista para cada 30 cidades. “No Brasil, ter cerca de 400 geneticistas para 13 milhões de pessoas com doenças raras não é viável”, avalia ele, que integrou a primeira turma de geneticistas do país, em 1977.

O Ministério da Saúde informou que investiu, entre 2019 e 2023, R$ 14,7 milhões em estudos para 25 doenças raras. Em 2020, o órgão estabeleceu o Programa Nacional de Genômica e Saúde de Precisão – Genomas Brasil para “incentivar o desenvolvimento científico” da área. Além disso, apoiou 94 pesquisas para desenvolvimento científico e tecnológico, com aporte de R$ 196,4 milhões.