Eliana Pittman reconheceu de imediato a beleza. Não era algo incomum para aquela que teve como padrasto o saxofonista norte-americano Booker Pittman (1909-1969), de quem herdou o sobrenome artístico e uma das lendas do jazz, habituado a tocar com Louis Armstrong e Count Basie.
Ao ouvir “Tendência”, ela ficou “profundamente impactada com a força dessa composição”. “Uma letra impactante, melodia marcante, e aquela maneira única de dizer tanto com simplicidade e beleza”, detalha Eliana. Lançada em 1981 com Beth Carvalho, no disco “Na Fonte”, a música foi registrada no mesmo ano por Dona Ivone Lara, que a assina com Jorge Aragão, em “Sorriso Negro”.
Foi a primeira vez que Eliana teve contato com “a genialidade” do músico que ela homenageia no recém-lançado álbum “Nem Lágrima Nem Dor”. “Percebi que estava diante de um compositor que fala direto à alma brasileira”, define.
Além de “Tendência”, outras canções imortalizadas por Jorge Aragão, cantadas ou compostas por ele, integram o repertório, como “Lucidez”, “Eu e Você Sempre”, “Loucuras de Uma Paixão”, “Minta Meu Sonho”, “Papel de Pão”, “Do Fundo do Nosso Quintal” e “Novo Endereço”, samba lançado por Alcione em 1987, de cuja letra foi retirado o verso que batiza o trabalho. A seleção deixa claro que o álbum não focou apenas nos “grandes sucessos”.
Das paradas de sucesso à geladeira
“Quis escolher músicas que falassem comigo diretamente, que tivessem uma conexão com as minhas vivências, com as minhas dores e alegrias. Foi um processo muito cuidadoso”, explica Eliana. Carioca da gema, ela começou a carreira no início da década de 1960, com apenas 15 anos, se apresentando em boates do Rio de Janeiro com standards do jazz e da bossa nova ao lado do padrasto, com quem gravou dois LPs, incluindo “Eliana e Booker Pittman”, em 1962.
Em 1966, estreou em disco solo com “É Preciso Cantar”, que trazia sua versão para “O Mundo Encantado de Monteiro Lobato”, samba-enredo da Estação Primeira de Mangueira. Na década de 1970, emplacou “Das Duzentas para Lá”, de João Nogueira, e, na sequência, apresentou ao Brasil o ritmo do carimbó, ao cantar a irresistível lavra do compositor paraense Pinduca.
Ironicamente, a mesma ousadia que a levou ao topo das paradas radiofônicas motivou o ostracismo, quando Eliana se recusou a seguir a fórmula comercial da repetição e foi posta “na geladeira” pelas gravadoras. “Quebrei um tabu, abri as portas para o carimbó, e depois paguei um preço caro”, recorda, sem, no entanto, “lágrima nem dor”.
Criatividade e reverência
Com o mais novo rebento, Eliana segue uma trilha que sempre a guiou, entre o inusitado e o consagrado, caçando pérolas e tendo como farol a beleza. “Revisitamos clássicos, claro, mas também demos espaço a canções que talvez não sejam as mais óbvias do repertório e que merecem ser ouvidas com atenção. A ideia era criar um mosaico afetivo do Jorge Aragão a partir do meu olhar”, justifica.
Essa criatividade também comparece nos arranjos. Identificados com uma geração de músicos que participou de trabalhos renovadores de Elza Soares e Jards Macalé, o paulista Rodrigo Campos, o belo-horizontino Thiago França e o alagoano Marcelo Cabral marcam presença no álbum de Eliana.
“Eu sempre acreditei no diálogo entre gerações. O convite para o Thiago e o Marcelo surgiu em conjunto com Rodrigo Campos, produtor do disco, da nossa vontade de dar a esse trabalho uma sonoridade contemporânea, sem perder a minha essência. Foi um encontro muito bonito”, ressalta.
A intérprete identifica na parceria “um frescor, uma musicalidade que conversa com a tradição do samba, mas também aponta para o novo”. De fato, as cordas de Campos e Cabral e os sopros de França percorrem linhas sinuosas que nunca chegam a desconstruir por completo a gênese das canções.
Firme delicadeza
Atenta ao presente sem negar o orgulho da trajetória construída até aqui, mirando o futuro com um vigor que a domina, Eliana diz que “tem visto muita coisa boa sendo feita, principalmente por mulheres e por artistas negros e periféricos que estão ressignificando o lugar da música popular”.
“A música brasileira é toda negra. Quer saber de sensualidade? Ouça Dorival Caymmi”, provoca ela, hábil em conjugar tais qualidades em sua arte. Com uma veia cênica, dramática e teatral, Eliana atuou no cinema, em novelas da Globo, séries da HBO e musicais. Essa notória diversidade converge para um ponto.
“Para que eu decida cantar uma música, ela precisa me tocar, tem que ter verdade. Pode ser simples ou sofisticada, mas se não tiver alma, não me alcança”, assinala. Logo, dar voz a Jorge Aragão foi mais do que natural.
“Sempre cantei samba, mas mergulhar no universo dele me trouxe uma nova compreensão da delicadeza e da firmeza que convivem em suas composições. Ele tem a rara habilidade de transformar sentimentos complexos em música ível e inesquecível. É um verdadeiro cronista da alma brasileira”, arremata, com a mesma precisão de quando alcança o microfone…
Biografia e jazz para comemorar os 80 anos
Eliana Pittman não disfarça. A autenticidade é uma das características mais visíveis de sua personalidade. “Muita coisa mudou, a forma como encaro o palco, como me relaciono com a indústria, com o tempo, com o meu corpo”, enumera, ao refletir sobre a proximidade dos 80 anos, a serem comemorados no dia 14 de agosto. Apesar disso, ela encara sua caminhada “com orgulho e gratidão”, ciente das escolhas e das pedras que chutou para longe.
“A paixão pela música, a vontade de me expressar e de emocionar o público permanecem intactas. Essa chama nunca se apagou e quero fazer o meu trabalho ecoar para as novas gerações”, declara. A voz prodigiosa, aliada à exuberância de sua figura de pele morena e olhar penetrante logo despertou o interesse das gravadoras, mas o temperamento avesso a imposições comerciais a afastou dos estúdios por quase duas décadas, o que tornou Eliana Pittman um nome menos reconhecido do que a medida de seu talento.
Parte dessa história será contada por ela própria numa biografia extensa e detalhada, além de um novo álbum de jazz, previsto para dezembro, ritmo ao qual deve sua formação musical. “O jazz é uma linguagem que nunca me abandonou”, confirma. “Tenho muitos planos, pretendo rodar com o show em homenagem ao Jorge Aragão por todo o Brasil e lançar esse trabalho em LP. Aos 80, estou cheia de ideias!”, comemora Eliana, com uma vitalidade expressa pelos palcos desde a década de 1960.