CINEMA

Cinebiografia ‘Maria Callas’, de Pablo Larraín, é ‘filme de fã’ de um jeito torto

Filme protagonizado por Angelina Jolie tenta se aproximar da mulher por trás da diva, mas acaba preso à imagem de palco da soprano

Por Alex Bessas
Publicado em 16 de janeiro de 2025 | 07:00

De um jeito torto, “Maria Callas”, que chega aos cinemas nesta quinta-feira (16), é uma daquelas cinebiografias que vão para a gaveta das obras-tributo, dos filmes de fã. Não que, para assistir à produção, seja preciso ser um conhecedor da história da soprano grega, nascida nos Estados Unidos, que reinventou o papel das cantoras de ópera, popularizando a música clássica. Tampouco é necessário ser íntimo do universo operístico, do qual representou o auge do estrelato. Afinal, no longa protagonizado por Angelina Jolie, rendendo indicações a prêmios como o Globo de Ouro para a atriz, o que interessa está além dos palcos – ainda que, nas palavras da personagem-título, os palcos estejam sempre no horizonte, ora como desejo, ora como memória e ora como assombração de um ado de sucesso que não pode mais ser.

O novo título do diretor chileno Pablo Larraín, que já levou para o cinema as histórias de outras duas grandes personagens históricas femininas – “Spencer”, de 2021, sobre a princesa Diana, a Lady Di; e “Jackie”, de 2016, sobre a ex-primeira dama norte-americana Jacqueline Kennedy –, se desenrola a partir de um recorte da vida da cantora: os momentos finais. Não por outro motivo, a morte de Maria Callas abre a produção, que, depois, retroage, mas não muito.

Embora haja tempo para oportunos flashbacks, que deixam entrever seus momentos de glória, que tenta reviver, sem sucesso, o tempo presente do filme, com roteiro de Steven Knight, coincide com o período de derrocada da carreira dessa estrela da ópera, quando ela se refugia em Paris, onde vive com seu mordomo, Ferruccio, vivido por Piersco Favino, e sua governanta, Bruna, interpretada por Alba Rohrwacher. Os “funcionários-cuidadores”, afetivamente envolvidos com ela, mais uma vez nas palavras da personagem, são encarados, de certa maneira, como a sua família.

Este é um dos aspectos que a produção parece se distanciar do formato “filme de fã”, daqueles que se esforçam mais em prestar um tributo do que em apresentar uma biografia consistente. Ocorre que, pelo recorte escolhido, os trunfos de Maria Callas aparecem apenas salpicados na história, que parece se interessar mais na mulher por trás da diva. Uma mulher, claro, que tem seus tantos defeitos. Há, por exemplo, o vício em remédios, que lhe corroem a saúde. O uso indiscriminado e abusivo de medicamentos ainda gera outro efeito colateral: as alucinações, que se tornam um subterfúgio dramatúrgico, com o filme se valendo de seus delírios para narrar sua história.

Em boa parte da trama, a personagem rea sua história a partir de uma entrevista imaginária para um jovem repórter de televisão. O personagem, vivido por Kodi Smit-Mhee, é chamado por Maria Callas, ciente de estar falando para uma alucinação, de Mantrax, uma referência ao medicamento que a protagonista acaba de tomar, em superdosagem. A partir do devaneio, se descortinam memórias reais: o início do conturbado relacionamento com o magnata grego Aristóteles Onassis – que também se relacionou com Jackie, outra mulher retratada por Larraín no cinema –, as tantas experiências vividas ao adentrar o universo da elite econômica e artística, os abusos que sofreu na mão de soldados nazistas, com o consentimento da própria mãe.

Cena do filme 'Maria Callas' | Crédito: Diamond Filmes/Distribuidora
Cena do filme 'Maria Callas' | Crédito: Diamond Filmes/Distribuição

Em outra frente, a produção acompanha as tentativas da soprano de retomar a potência da voz de seus tempos áureos. Uma empreitada inglória que leva a cantora a um teatro vazio, onde, na companhia de um pianista, tenta reencontrar a persona “La Callas”, a diva operística que lhe rendeu fama, dinheiro, o e um sem-número de fãs mundo afora. É ao cantar com voz vacilante, para um público ausente, que ela revive, por exemplo, sua primeira grande aparição, quando em 1949, em Veneza, ao substituir outra artista em uma apresentação, ela rouba a cena.

Mas, mesmo se concentrando na ruína – como se a narrativa quisesse se aproximar ou ao menos prestar uma ode às tragédias operísticas –, “Maria Callas” ainda se mantém na prateleira dos filmes de fã ao, por exemplo, tomar o cuidado de, mesmo ao tratar de temas delicados, não desabonar a diva: a personagem é elegante mesmo quando, em surto, esconde pílulas de remédios pela casa. Ela não perde a compostura nem sequer ao ter uma breve crise de abstinência, chamando insistentemente por sua governanta. 

Já suas alucinações são abordadas mais como bênção do que como assombro. Nelas, em vez de perturbação, há imagens de conforto, como pessoas cantando em pontos turísticos de Paris – praticamente toda a produção, aliás, é emoldurada com belas e requintadas locações parisienses.

Essa abordagem tem como efeito fazer que tanto o vício quanto os delírios surjam em cena com um verniz romantizado. Alguns diálogos parecem até sublinhar essa característica. Caso do momento em que Maria Callas é questionada por seu mordomo sobre qual remédio tomou. Ela então responde: “Eu tomei liberdades a vida toda. E o mundo tomou liberdades comigo”. Em outra cena, ao recusar ajuda médica, a artista argumenta que, na verdade, suas alucinações são um tipo de lucidez que a ciência não consegue entender.

O tempo todo, portanto, ela parece ter pleno domínio de si, mesmo que, por definição, o vício e as perturbações inconscientes sejam o exato oposto a tanto autocontrole. Há um trecho da obra que, talvez, ajude a entender o porquê dessa opção dramatúrgica. Nele, a protagonista conversa com sua irmã, quando diz que está preparando uma autobiografia. Ela é logo aconselhada a não seguir com o projeto ou, ao menos, a ser mais generosa, mais indulgente consigo mesma. No caso, a indulgência foi tanta que as falhas, em alguns momentos, soaram como virtudes – o que não é tão raro em filmes-tributo.

Ao fim, a sensação que fica é que, mesmo aparentemente interessados em retratar mais a mulher “Maria” do que a diva “La Callas”, Larraín e Knight acabaram atraídos pelo magnetismo da cantora e levaram aquela persona, em toda sua performatividade, do palco para a coxia.

Uma impressão que se torna ainda mais patente quando, já nos créditos finais, surgem imagens de Maria Callas feitas em gravações caseiras, onde aparece sorridente, se divertindo com seus próprios gracejos ao dar uma piscadela para a câmera ou, de um jeito quase desajeitado, lutando contra o vento que bagunça o lenço branco que ela usa sobre a cabeça. Uma breve aparição que se contrapõe ao retrato proposto em mais de duas horas de filme, onde a soprano, mesmo nas melhores memórias, soa pesada, sempre dotada de reverência, excessiva sobriedade e econômicos sorrisos.