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Maria Lúcia Godoy completa 100 anos com projeto de museu, digitalização da obra e homenagem pública
Maior intérprete de Villa-Lobos no mundo, a cantora mineira conquistou poetas, políticos, maestros e anônimos com a sua voz lírica
Dormindo tranquilamente no último aposento de um espaçoso apartamento no bairro Santo Antônio, em Belo Horizonte, Maria Lúcia Godoy faz o que seu corpo deseja, o mesmo corpo que, desperto, habituou-se a ultraar o limite humano. Talvez esteja sonhando em francês ou italiano, como se tornou comum para ela nesses momentos de íntima devoção ao ser. Nos retratos espalhados pela sala, ela ainda não possui os 100 anos que lhe renderam uma justa homenagem da Assembleia Legislativa de Minas Gerais no último dia 2 de setembro, quando comemorou a data.
Ali, o tempo parece fixar um instante eterno, como não raro acontecia quando Maria Lúcia soltava a voz de soprano. O poeta Ferreira Gullar a comparou a “um pássaro voando”. Fernando Sabino destacou a falta de “vedetismo e afetação” ao igualá-la ao “denso e profundo mistério da criação: uma voz em que a poesia se reflete”. Para Carlos Drummond de Andrade, ouvi-la era um consolo diante da dor da destruição: “Ouro não se destrói!”, proclamava.
Certa vez, um gari que a história tratou de manter no anonimato se dirigiu a Maria Lúcia para dizer: “Dona, sua voz é a paz no coração, sua voz é o silêncio do mundo”. Bajulada por políticos importantes como Juscelino Kubitschek e Tancredo Neves, exaltada ao redor do mundo por editoriais do New York Times, Washington Post e The Philadelphia Inquirer, eleita pela célebre cantora lírica brasileira Bidu Sayão como sua “única sucessora”, ela nunca se esqueceu dessas palavras, às quais o músico Daniel Godoy, sobrinho de Maria Lúcia, faz coro.
“Ela cantou com as maiores orquestras e os maiores maestros do planeta. Era uma coisa de louco! Essa mulher é um fenômeno. Sabe aquelas coisas que te dá um arrepio? Beatles, Disney, Chaplin. Só acontece uma vez!”, garante Daniel. Atualmente, ele é responsável pelo acervo da tia, que pretende disponibilizar ao público com um museu na Universidade Federal de Minas Gerais, onde Maria Lúcia se formou em Letras, e, em 2016, foi condecorada com o título de Doutor Honoris Causa. Outra intenção é levar a intensa produção musical de Maria Lúcia, que contabiliza cerca de 20 CDs e LPs, para as plataformas digitais.
Personalidade
Nascida em Mesquita, no Vale do Rio Doce, Maria Lúcia mudou-se com a família para a capital mineira “ainda menina”, como sublinha Dedéia, a irmã caçula, hoje prestes a completar 80 anos. O vovô Romeu, como Daniel se refere ao pai de Maria Lúcia, teve dez filhos, “cinco homens e cinco meninas”, diz, repetindo os versos recitados pela cantora lírica em sua última apresentação pública, em 2014, na reinauguração do Teatro Francisco Nunes, quando o sobrinho a acompanhou ao violão. A progressiva perda da audição foi, aos poucos, afastando Maria Lúcia do tablado.
Nas reuniões familiares, principalmente no Natal, era comum Maria Lúcia interpretar “Azulão” (de Manuel Bandeira e Jayme Ovalle), um dos clássicos de seu repertório, e sofrer com as diatribes dos parentes, que, diante da indefinição do eu lírico, enxotavam o pássaro a ir logo embora com um palavrão. “Ela ficava muito brava quando a gente fazia paródia com as músicas dela, dizia que não ia cantar mais”, diverte-se Daniel, que tinha que correr da tia para não receber puxões de orelha em reprimenda.
Outro traço da personalidade era a modéstia e introspecção, numa convivência harmoniosa com a vaidade. “Ela sempre foi muito tranquila, não gostava de badalação”, confirma Dedéia, que aproveita para mostrar um momento de descontração da irmã, numa fotografia onde ela aparece aos risos com um mico no ombro, durante excursão em Manaus, em que a “beleza exuberante” de Maria Lúcia se destaca. Não por acaso, ela foi retratada por desenhistas e pintores da estirpe de Inimá de Paula, Alberto Delpino, Pedro Miranda e Ricardo Wagner. “Quando ela vem aqui na sala, ela fala: ‘Olha como eu era bonita!’”, conta o outro sobrinho, Christiano.
“Onde ela ia, conquistava todo mundo, principalmente os homens, porque sempre foi muito charmosa e atraente”, salienta Daniel. Entre os fãs célebres de Maria Lúcia, estava o diretor Glauber Rocha, ícone do Cinema Novo. Tanto que a cantora interpretou as “Bachianas Brasileiras Nº 5”, de Villa-Lobos, uma das peças que a consagrou, no velório do cineasta baiano. “No mundo da cultura, não apenas da música, a Maria Lúcia era muito querida, ela cativava pela inteligência, doçura, e também escrevia muito bem”, completa o sobrinho. Durante décadas, Maria Lúcia assinou colunas de jornal, publicou livros infantis, e, em seu último disco, lançado em 2012, interpretou sete cantigas de sua autoria em “Acalantos”.
Trajetória
A primeira professora de canto de Maria Lúcia Godoy foi Honorina Prates, lembra sua irmã Anna Maria, de 87 anos. Depois, o pai decidiu se mudar com mala, cuia e todos os rebentos para o Rio de Janeiro, a fim de que a filha aprimorasse os estudos. Lá, ela tomou aulas com Pasquale Gambardella, até ganhar uma bolsa de estudos e partir para a Alemanha. Começava o périplo da artista pelo globo terrestre. “Os alemães choravam ao ouvir a Lúcia cantar”, declara Anna, que a acompanhou na viagem. Ainda em Belo Horizonte, Maria Lúcia era “a única com um quarto só para ela”, na casa que chegou a comportar 22 habitantes.
“Os filhos se casavam e meu pai não deixava ninguém sair, ia morando todo mundo lá. Um dia, ele resolveu pintar a casa de vermelho, era doido!”, brinca Dedéia. O jasmineiro ao lado do pé de romã, com banquinhos e dois coqueiros, era “o predileto para namorar”, confidencia ela. O local também se tornou ponto de encontro da “nata da cultura mineira”, recebendo Clara Nunes, Fernando Sabino, Olavo Romano e a estilista Zuzu Angel, que costurava para a mãe de Maria Lúcia, conhecida no círculo íntimo como Neném.
Essa efervescência cultural propiciou a criação do Madrigal Renascentista, em 1956, coral que teve a regência de Isaac Karabtchevsky, com quem Maria Lúcia ficou casada por um ano. Com o Madrigal, fundado pelos maestros Carlos Alberto Pinto Fonseca, Carlos Eduardo Prates e Karabtchevsky, eles realizaram três turnês internacionais, gravaram oito discos, e se apresentaram na inauguração de Brasília, a convite de JK. “Meu pai fez um quarto na nossa casa só para o Madrigal ensaiar”, recorda Dedéia.
Daniel, que “atrapalhava os ensaios, porque queria assistir tudo”, teve a infância definida por essa experiência. “Era uma coisa que emocionava uma criança de cinco anos. O Karabtchevsky me disse uma vez que procurava até hoje a sonoridade daquela época do Madrigal e nunca mais tinha encontrado”, revela Daniel. Durante a homenagem na Assembleia, quando a atual formação do Madrigal interpretou a clássica “Amo-te Muito”, Maria Lúcia “interagiu, sorriu e acompanhou com os lábios”. “Ela ascendeu!”, define Daniel, responsável pelo discurso de agradecimento na cerimônia.
Encanto
Foi inspirado pela voz de Maria Lúcia que Tom Jobim criou a melodia de “Sabiá”, com letra de Chico Buarque. Os dois ficaram amigos no Rio de Janeiro. Regente da trilha sonora do desenho animado “Fantasia”, da Disney, Leopold Stokowski também “ficou desorientado” com a voz da artista. Segundo Bidu Sayão, a voz da intérprete era “um colosso”. “Minha avó dizia que a Maria Lúcia não cantava as músicas. Ela interpretava, tinha um entendimento do texto e um veludo na voz”, afirma Daniel, o que a levou a ser considerada a maior intérprete de Villa-Lobos no mundo. Ele exemplifica com a parte final da célebre “Bachianas Brasileiras Nº 5”, em que, com a boca fechada, a chamada “boca chiusa”, Maria Lúcia emite sons apenas pela garganta, lembrando a imagem do “pássaro voando” referida por Ferreira Gullar.
De acordo com Dedéia, é assim que ela ainda chama as cuidadoras, à noite, quando precisa de algo. Levada pela irmã ao Iraque, onde o marido trabalhava na Petrobras, Maria Lúcia cantou as “Bachianas” em meio às ruínas dos Jardins Suspensos da Babilônia, entre os rios Tigre e Eufrates, uma das Sete Maravilhas do Mundo. “O pessoal ficou boquiaberto!”, recorda Dedéia. Daniel reforça que, a despeito de “nunca ter tido empresário”, Maria Lúcia levou “a música mineira, brasileira, o folclore, as serestas, para o mundo inteiro”, percorrendo Europa, Estados Unidos e Japão.
“Ela canta em qualquer língua. Divulgou todos os grandes compositores brasileiros”, referenda o sobrinho, ao citar Villa-Lobos, Hekel Tavares, Edino Krieger, Carlos Gomes, Waldemar Henrique, Guerra-Peixe e também nomes da seara popular, como Milton Nascimento e Fernando Brant, de quem registrou “Travessia”. “Maria Lúcia ouvia de tudo, música popular, samba, ópera”, afiança a irmã Anna Maria. O universo operístico, aliás, a presenteou com papéis catárticos em “O Barbeiro de Sevilha”, “Fausto”, “Orfeu”, “La Traviata” e “La Bohème”. “Era também uma atriz, uma artista completa. Na época não havia internet para dar toda essa mídia, mas as pessoas podem assistir a trechos no YouTube”, indica Daniel.
Em seus concertos derradeiros, Maria Lúcia Godoy teve a companhia preferencial dos pianistas Miguel Proença, Talitha Peres, Túlio Mourão e do violonista Sérgio Abreu, falecido no ano ado, que se tornaram seus fiéis escudeiros. “A música era a vida da Maria Lúcia, era tudo, sempre foi uma relação muito intensa”, resume Dedéia. Em uma entrevista a Graça Prado publicada no jornal Diário de Pernambuco, em 1979, Maria Lúcia respondeu à mesma pergunta: “Não tenho barreiras em matéria de música. Acho que já nasci cantora. A intuição e a vontade são mais fortes que tudo”. Os parentes agora a flagram “dormindo igual a Santa Maria”, observa Dedéia, emitindo a paz e o silêncio do mundo que um anônimo identificou em sua voz.