O uso indiscriminado da melatonina - suplemento hormonal usado para induzir o sono - tem levado autoridades de saúde a emitir alertas nos últimos anos. Disponível nas gôndolas das farmácias em forma de gotas, pastilhas, bala de goma ou em pílulas, a suplementação ou a “estar na moda”, atraindo a atenção de quem tem dificuldade para dormir, seja ela por qual motivo for. No entanto, essa utilização desenfreada - sem prescrição médica - contrasta com a realidade de quem necessita fazer uso do suplemento para regular os distúrbios do sono e melhorar a qualidade de vida. É o caso das crianças com deficiências de neurodesenvolvimento, especialmente as diagnosticadas com o Transtorno do Espectro Autista (TEA). 

Conforme a Academia Americana de Neurologia (AAN), o risco da população autista infantil apresentar dificuldades para dormir pode ultraar os 80%. O Instituto do Sono descreve que isso ocorre porque, em pessoas com transtorno do espectro autista, é comum haver um desequilíbrio do chamado ritmo circadiano - nome dado ao como em que o organismo realiza suas funções ao longo de um dia. A atividade de dormir e ficar acordado nas 24 horas do dia é regulada por um relógio biológico, que é o mecanismo que avisa ao cérebro se é noite ou dia, e se a pessoa deve ter sono ou ficar desperta. Uma das ferramentas que regula esse ciclo é justamente a melatonina – hormônio produzido naturalmente pelo organismo e liberado durante a noite. 

“A melatonina é um hormônio secretado pela glândula pineal, que está presente no nosso cérebro. Ele é produzido em resposta a uma diminuição da luz solar, ou seja, conforme a luz vai diminuindo, a secreção desse hormônio no nosso corpo vai aumentando, o que leva à sensação de sono. Então, o suplemento de melatonina funciona de forma a aumentar os níveis do hormônio, já produzido naturalmente pelo nosso cérebro. O que vai fazer com que haja uma sinalização mais eficaz para o nosso corpo entender que está na hora de dormir,” explica a neurologista da Santa Casa BH Larissa Carvalho. 

No Brasil, assim como nos EUA e em outros países, a melatonina está incluída na categoria de alimentos e não se enquadra como medicamento. Esse é um dos fatores que leva muita gente a acreditar que a utilização do produto pode ser feita de forma livre e aleatória, sem indicação médica. No entanto, alguns especialistas avaliam que isso é um risco, uma vez que o uso em excesso do suplemento, como de qualquer outro, pode provocar efeitos colaterais. Além do mais, pelo fato de não ser um remédio convencional, o produto pode ter menos supervisão e fiscalização do que os medicamentos. 

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Os riscos

A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) definiu como dose segura 0,21 mg de melatonina por dia. Mas indica o uso apenas para pessoas acima de 19 anos. Nos Estados Unidos e também em países da Europa, é possível encontrar o suplemento com dosagem bem maior, que chega até 5 mg. Nesses locais, o produto também é vendido livremente, sendo comumente usado em crianças. Um dos impactos disso foi percebido e divulgado pela Academia Americana de Medicina do Sono (AASM- sigla em inglês). A entidade verificou, por meio de um estudo, um aumento expressivo de atendimento emergencial em pronto-socorros infantis por causa de superdosagens de melatonina ou intoxicação após o uso do suplemento. A pesquisa ainda mostrou que o número de crianças que ingeriram involuntariamente o produto saltou 530% em 10 anos, resultando em internação hospitalar em mais de quatro mil casos. 

“O conteúdo de melatonina em suplementos pode variar amplamente. Em um dos estudos sobre o tema, a variação foi de menos da metade a mais de quatro vezes a quantidade declarada no rótulo. A variabilidade mais significativa no conteúdo de melatonina foi em comprimidos mastigáveis ​​- a forma que as crianças têm mais probabilidade de usar. Alguns produtos até continham outras substâncias químicas que precisam de prescrições médicas para serem ingeridas. Por isso, os pais devem conversar com um profissional de saúde antes de dar melatonina ou qualquer suplemento para crianças,” alerta a AASM.

A médica da Associação Brasileira do Sono Sandra Dória Xavier acredita que “a moda da melatonina” se deve a facilidade com que o produto pode ser obtido. “Por ser vendido como um suplemento alimentar, acaba sendo inadvertidamente utilizado, como se fosse algo que não afeta, que não atrapalha, que não causa nenhum efeito colateral ou que é só benéfico. Mas, na realidade, a melatonina é um hormônio que afeta todos os órgãos do nosso corpo. Então, apesar de não termos trabalhos muito claros sobre os riscos, temos que pensar que a melatonina é um cronorregulador. Ou seja, se estiver com dosagem a mais, você vai estar desregulando o teu organismo como um todo,” explica a especialista.

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Editoria de Arte/O Tempo

Benefícios x malefícios  

Apesar do alerta para os riscos de overdose, a AASM diz reconhecer que a melatonina pode melhorar o sono em crianças cujos relógios biológicos estão “fora do horário”, principalmente daquelas que têm problemas de neurodesenvolvimento. No Brasil, diversos especialistas recomendam o uso do suplemento para esse público. “Nós geralmente indicamos melatonina para as crianças que têm dificuldade de iniciar o sono. Geralmente, elas possuem algum transtorno de neurodesenvolvimento, como por exemplo, autismo ou déficit de atenção. Esse é um produto bastante tolerado na infância,” explica a neurologista da Santa Casa BH Larissa Carvalho. 

A médica do sono e membro da Sociedade Brasileira de Neurologia Infantil (SBNI) Letícia Soster diz que a recomendação só tem bons resultados para pacientes que sofrem com distúrbios do ritmo circadiano. A respeito de estudos voltados para a comprovação científica dos benefícios da melatonina para crianças com transtornos de neurodesenvolvimento, Letícia afirma que “não há trabalhos de pesquisa suficientes para dizer que uma criança sofreu um malefício pelo uso da melatonina, mas também não há sobre os benefícios diretos.”

“Na teoria, conhecendo-se a fisiologia da melatonina, o seu uso indiscriminado ou em dose elevada pode sinalizar ao corpo que é noite, quando não é. Por exemplo, usar dose alta de melatonina à noite numa criança - que não tem necessidade do suplemento - pode fazer com que ela tenha o hormônio circulante no período da manhã. Ou seja, isso levaria o corpo a entender que é noite, quando na verdade já é dia”, destaca Soster. 

A vida antes e depois da melatonina 

Se de um lado, há pessoas que fazem o uso descontrolado e desnecessário da melatonina, do outro, existem crianças com Transtorno do Espectro Autista (TEA) que aram a ter mais qualidade de vida após a ingestão do suplemento. Renata Regina Mendes, de 51 anos, recebeu o diagnóstico de autismo do filho, Mateus Mendes Batista Pinto - hoje com 18 anos - quando ele ainda tinha 5. A servidora pública relembra que, no início, o garoto não tinha muitos problemas com o sono. Mas conforme ele ia crescendo, a situação foi mudando. 

“Eu dava chás para ver se ele se acalmava, se conseguia relaxar para dormir. Mas estava ficando muito difícil. Então, ouvi outras mães comentando sobre o quanto a melatonina ajudava elas neste processo. Então, perguntei ao médico se meu filho poderia consumir o produto. Ele autorizou e desde então, a qualidade do sono do Mateus melhorou muito. Antes ele dormia cada dia mais tarde. Depois do hormônio, começou a ter horários mais fixos e mais facilidade para dormir,” conta Renata. 

Natália Maia de Queiroz, de 40 anos,é mãe de Bernardo Queiroz Ferreira, 6. O garoto teve problemas com sono desde bebê. Aos 4 anos, começou a tomar risperidona - um medicamento que ajuda a controlar os sintomas do autismo, mas que piorou a bronquite do menino. “Então a médica sugeriu que a gente usasse melatonina. O Bernardo até hoje usa para dormir. O suplemento o ajuda a iniciar o sono. Às vezes, ele ainda acorda de madrugada, depende muito de como foi o dia dele,” enfatiza a mãe. 

Quem também percebeu os benefícios da melatonina foi Rita de Cássia Ferreira Souza, 49 anos. O filho dela André Vinícius Ferreira Souza, de 11 anos, foi diagnosticado com TEA aos 8 anos de idade. “Ele era um bebê que não dormia. Eu o levava na pediatra, e ela dizia que era assim mesmo, que algumas crianças tinham menos sono. Só em 2021, que o André recebeu a recomendação para usar a melatonina manipulada, que tem menos açúcar. No outro dia, ele já teve uma noite de sono completa e só acordou no outro dia. Até hoje, ele consome quase todos os dias o suplemento e não há ainda previsão de alta,” destaca Rita. 

Para além da melatonina 

O Instituto do Sono afirma que as principais dificuldades de sono das crianças com TEA são: recusar ir para a cama; protelar ou precisar da presença de um dos pais ou cuidadores até adormecer; dificuldade de ‘pegar no sono’ e de permanecer dormindo; dormir por curtos períodos ou não o suficiente todas as noites e problemas de comportamento diurno associados a sono insuficiente à noite. Mas, o tratamento para os pacientes não é baseado apenas em medicamentos ou suplementos, como a melatonina. 

Segundo o psiquiatra e coordenador do Departamento de Psiquiatria da Infância e Adolescência da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) Francisco Assumpção, os primeiros os são a adoção de mudanças comportamentais, e só depois são recomendadas as intervenções medicamentosas. O especialista afirma que as alterações de ritmo circadiano do público autista vão ser melhor trabalhadas, inicialmente, por mudanças de padrões comportamentais. 

“Para que a criança tenha melhor qualidade de sono, é preciso avaliar vários fenômenos. O primeiro é a recusa de deitar ou ir para a cama sem os pais. Aí é preciso entrar na raiz desses problemas, para poder ter as respostas. Além disso, existem algumas questões que fazem parte da higiene do sono e que precisam ser consideradas, como evitar alimentos cafeinados e atividades físicas e sociais até tarde e ter uma rotina estabelecida de dormir, para se determinar ritmos de sono adequados. E outra coisa muito importante, regrar o tempo de tela. É que a estimulação luminosa e auditiva dificulta a estruturação do sono,” enfatiza o médico. 

Proibição da Anvisa

Em agosto do ano ado, a Anvisa proibiu a fabricação, venda, distribuição, propaganda e o uso de um suplemento específico: o Soninho Perfeito Melatonina Kids. Na internet, perfis da marca afirmavam que o produto tratava problemas infantis de sono, ansiedade, compulsão alimentar, irritabilidade noturna, inflamação, além de promover melhoras em casos de transtorno do espectro autista e câncer. No entanto, nenhuma dessas alegações é aprovada pela entidade, que diz que “não há comprovação de efeitos diretos aos consumidores".

“A Anvisa aprovou a melatonina para a formulação de suplementos alimentares, considerando que a mesma é uma substância bioativa naturalmente presente em alimentos e segura ao consumo nos limites estabelecidos. O que não foi aprovado é o uso de alegações que atribuem benefícios diretos associados ao consumo desses suplementos,  inclusive em relação ao sono. Para usar este tipo de alegação, as empresas devem apresentar à Anvisa evidências que comprovem que consumi-los, na forma e pelo tempo indicados, resulta em benefícios,” disse, em nota, a agência.