RIO GRANDE DO SUL. Quando alguém diz que não há palavras para descrever a destruição vista pessoalmente pelos temporais no Rio Grande do Sul, não é mera declaração protocolar ou uma expressão clichê. Em nenhum pesadelo, tamanho estrago jamais foi imaginado.
Ninguém nunca pensou que navegaria de barco na própria rua, na altura dos telhados. Assim como ninguém nunca pensou que fosse sair de sua casa para fugir da água, mas quando retornasse, encontraria apenas o piso, sem que qualquer tijolo das paredes tenha resistido.
Nos meus dez dias percorrendo o Estado, infelizmente, estive nas duas cenas e é impossível não se colocar no lugar de quem perdeu tudo.
São duas situações que fazem parte de um processo que afeta toda uma população. Enquanto na primeira ainda há expectativa da água baixar para tentar salvar algo (uma cadeira, um armário...), na segunda essa esperança é exterminada sem qualquer possibilidade de defesa. E é nesse momento que uma das maiores dores toma conta.
As enchentes em várias cidades do Rio Grande do Sul começaram há cerca de 20 dias e ainda há bairros completamente inundados. Em alguns locais, a água já ensaiou baixar, mas subiu de novo, desiludindo quem espera poder entrar em casa e entender como viver daqui para frente.
Canoas, Porto Alegre e Esteio são apenas algumas das cidades ainda com água. Fora de casa há semanas, quem mora nesses locais se apega, pelo menos, à informação de que as paredes continuam de pé.
No Vale do Taquari, a água assumiu uma fúria que a melhor explicação criada não é capaz de consolar quem não tem mais nem as paredes de casa. E os que têm paredes, mesmo que cambaleantes, se deparam com uma lama assolada e com o anúncio de que o bairro onde viveram e construíram sonhos será desabitado. Como se fosse uma vassoura que ou puxando tudo. Tirou do mapa.
É impossível caminhar sobre o que sobrou sem imaginar onde ficava cada detalhe. O local onde estavam dispostos os porta-retratos ou que a família se reunia para assistir televisão na hora do jantar. Onde conversava sobre como foi o dia ou até mesmo sobre algum problema que, hoje, se tornou insignificante diante da tragédia.
Uma, duas, três. Quatro enchentes em oito meses. É impossível estar ou esperar que se fique minimamente bem. Nada fica a salvo, restam apenas os entulhos. Ou, por um pingo de piedade do destino, apenas a flauta da Sofia Alana, de 13 anos, que a mãe, a costureira Magali Beatriz Bonmann, de 42 anos, encontrou nos escombros. Na casa delas, sobrou apenas uma parede.
Esse povo não sabe como vai se reerguer. Nem se é possível se reerguer. Tamanha destruição jamais vai sair dali, e muito menos de dentro dessas pessoas. Elas estão exaustas no olhar, na fala, no andar e no coração.
São pessoas em que não basta a vida apenas ser difícil, de muita luta; o que elas têm ainda é tomado. E quando essa destruição vem de uma cobrança de conta da natureza, a raiva assume um espaço ermo. Fato é que sumir do mapa não é digno para ninguém, em nenhum lugar, em nenhuma circunstância.
Não à toa, ouvi do metalúrgico Irani de Freitas, de 43 anos, da cidade de Estrela: “Fica tudo perdido. Tu não sabe o que faz, pra que lado tu vai, pra que lado tu segue. Fica sem rumo. Tudo errado, perdido. Não volto mais pra cá. Você já está mais de meia-idade e aí tu consegue algumas coisas e vai tudo embora de novo.”
E mais: as pessoas ficam com a lembrança de quase morte constante no pensamento. É cruel. É desumano não poder fechar os olhos sem que o tormento da tragédia continue sob a luz do pensamento, e sem data para ir embora. Não são só cidades arrasadas. São, também, pessoas destruídas em vida.
Causa uma sensação de impotência ver tudo isso e ouvir essas pessoas que, em um momento de tanta dor, contam suas histórias como uma espécie de desabafo. Senti, muitas vezes, que elas só precisavam de um momento de explosão para que tudo o que estava entalado, saísse. Gente simples, que sobrevivia, e nem assim deixa de tratar bem, de oferecer uma comida ou um café que elas, agora, mal têm. Por mais desolador que seja ouvir esses relatos, a dor não chega nem perto de falar sobre o que se foi.