OPINIÃO

O naufrágio 26q30

'A maioria das pessoas não gosta da única certeza que adquire no momento de nascer e foge de pensar nisso' 5w1n5l

Por Vittorio Medioli
Publicado em 27 de abril de 2025 | 14:52
 
 
Pessoa solitária sentada no banco sob um velho carvalho Foto: Freepik

Não tem um dia que se repita na vida de um ser humano – aparentemente iguais, na realidade apresentam detalhes diferentes. Se analisarmos a química do ser humano, encontraremos que se alteram milhares ou milhões de células a cada dia, num processo contínuo de substituição. Em sete anos se verifica uma troca completa de tudo aquilo que constitui um corpo. Num menino de 7 anos não há mais uma célula de quando nasceu; da mesma forma para o de 14 anos em relação ao de 7; e assim em diante. O papa Francisco, que faleceu com 88 anos, trocou 12 vezes integralmente seu corpo e, na 13ª, veio a faltar-lhe o mínimo suficiente.

O corpo é feito de substâncias mutantes, aceleradas por energias variáveis. No corpo humano existem trilhões de partículas atômicas, assim como o universo que resplendece numa noite estrelada. O corpo tem alguma correspondência com o sistema solar, segundo os iluminados.

O xamã do Yucatan aconselhava: “Viva cada dia como se fosse o último”. Dessa forma, não será condicionado pelo ado nem usará em vão a mente para se projetar no futuro. Vive apenas o presente, integralmente. 

É assim que vive a criança em sua inocente felicidade, não toma conhecimento de ado ou futuro, relógio, compromissos. Vive apenas de estímulos ditados pelo presente. Não almeja se formar engenheiro, ganhar um bom salário, ter carro, casa, dinheiro, conforto e luxo.

A melhor coisa que tem o recém-nascido é apenas o peito da mãe, que lhe fornece alimento. O mundo inteiro se resume às sensações e prazeres de saciedade, de calor, transmitidas a ele pelos seios da mãe. Sua reminiscência restringe a paz ao ventre materno antes de se alimentar do leite, de sabor insuperável. A mãe é o começo e o fim. É o prazer, e sua ausência, a dor.

A maioria das pessoas não gosta da única certeza que adquire no momento de nascer e foge de pensar nisso. Mesmo crescendo de pouco mais de 30 cm a 200 cm, ninguém escapará de perder o corpo, que perde a capacidade de se renovar e implacavelmente caduca. Morrerá.

O pavor da morte se deve ao desconhecimento e, também, às reações do ambiente, da família, dos amigos, da sociedade em geral, daqueles com os quais se convive. O medo do fim da vida pode estimular a viver plenamente, a não perder tempo, a participar de uma expansão que segue as regras do universo em que estamos.

As teorias espiritualistas de qualquer religião nos concedem a vida eterna em espírito quando o fim do corpo físico se consuma. 

As religiões orientais e teorias esotéricas pregam a reencarnação, que parece bastante lógica à luz dos diferentes graus de desenvolvimento físico, intelectual, moral e comportamental, que derivam das condições de nascimento.

As religiões cristãs, apesar de Cristo nunca ter se pronunciado a respeito, concederam em sua doutrina o aporte para a felicidade eterna em apenas uma vida, e a decisão foi tomada para atrair a população mais pobre e sofrida, que queria se livrar dos tormentos e dores do mundo rapidamente.

Alguns nascem sem capacidades, deformados, prejudicados; outros, com uma energia exuberante e avantajada. Pergunta-se: de onde os méritos, de onde os pecados, de onde a casualidade dessas variedades enormes...? 

No Oriente, segundo o conceito popular, tudo é karma, que são cobranças de atitudes, de dívidas que tivemos nesta e em outra vida. Já o dharma, outro aspecto existencial, é uma modificação do karma, isto é, podemos desenvolver nossos dons e qualidades para modificarmos os karmas existentes.

Segundo Platão na enunciação dos seus “mitos”, as almas desencarnadas, que vivem à espera de retornar ao mundo físico, têm direito de escolher onde encarnar e assumir, assim, o DNA da linhagem dos pais. Mas nisso tem um fila, e a escolha é restringida segundo o conteúdo do karma individual. Terá melhores possibilidades de escolha quem possuir mais méritos.

Advertem profecias orientais que, no futuro não distante, o ser humano mais evoluído, ao desencarnar, já deixará seus pertences onde quer voltar ou reencarnar e que a morte será uma escolha como aquela de trocar de roupa.  

Já deixa uma muda para vestir.

Isso seria possível na evolução da nossa raça, com o ampliar-se de potencialidades, já inatas. O budismo não coloca Deus fora da individualidade humana, mas justifica as vidas para encontrar o caminho do despertar dessa potencialidade. O reino de Deus está em nós. A ascensão de Cristo está a explicar o caminho do homem, que retorna ao pai nas mesmas condições dele, Deus.

Gastei minha vida para vencer uma congênita ignorância e pequenez. Consegui um vislumbre do infinito à minha frente. Contudo, me sinto feliz, como o poeta que revelou: “o naufragar é doce neste mar”.