O Registro Brasileiro de Transplantes, relatório divulgado no início deste mês pela Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO), mostrou que o número de procedimentos realizados no país entre janeiro e setembro deste ano aumentou 12% na comparação com o mesmo período do ano ado. O nível é o maior dos últimos quatro anos. Foram contabilizadas 6.559 cirurgias nos nove primeiros meses de 2023, contra 5.855 em 2022.
Apesar do bom resultado, o país ainda não alcançou o patamar registrado em 2019, antes do início da pandemia de coronavírus - quando teve 6.722 órgãos transplantados no período, incluindo coração, fígado, intestino, pâncreas, pâncreas, pulmão, rim e multivisceral. Outro ponto não satisfatório é que ainda existem 41.334 pessoas aguardando por uma doação de órgão. Segundo a lista do Ministério da Saúde, atualizada em 8 de dezembro deste ano, 38.065 pacientes esperam por um rim; 2.263 por um fígado; 400 por pâncreas/rim; 386 por um coração; 170 por pulmão; 43 por pâncreas e 7 por multivisceral.
Algumas entidades, coletivos e organizações atuam na linha de frente para que essa lista reduza cada vez mais. A Rede #deixevivo, por exemplo, foi criada ainda em 2017 como um perfil nas redes sociais, em que Giovanna Fiori, 31, compartilhava sua trajetória enquanto paciente renal em hemodiálise, à espera de um transplante. A idealizadora do projeto nasceu com uma insuficiência nos rins, ou a infância fazendo muitos exames e tomando remédio. Quando em 2017, com 25 anos, chegou a ter 17% da função renal e precisou começar o tratamento que limpa o sangue dos rins.
“Eu já era uma doadora, mas é diferente quando você está do outro lado da história, não é? Então comecei a ir atrás de informações e descobri que a recusa familiar era um dos motivos da alta demanda. Pensei, preciso fazer alguma coisa a respeito. Foi quando criei o perfil e comecei a publicar conteúdos informativos. Fui me conectando com outras pessoas, com causas parecidas e, de repente, a gente já era um grupo de 15 voluntárias. Segui com a hemodiálise por um ano e 11 meses, até que no dia 23 de maio de 2019, recebi o meu novo órgão, de uma família que disse sim e transformou a minha vida,” relembra.
De 2018 a 2020, o projeto #deixevivo continuou crescendo - ainda no mundo virtual -, como uma forma de inspirar, informar e partilhar histórias sobre a doação de órgãos. Em 2021, ele expandiu, tornando-se um coletivo de pessoas nomeado como Rede #deixevivo. Em 2022, a ascensão fez a instituição se transformar em uma Organização da Sociedade Civil (OSC) de São Paulo (SP). Atualmente, o instituto além de conscientizar a sociedade sobre a doação de órgãos e tecidos, também atua no acolhimento de pacientes renais crônicos, pessoas em lista de espera para transplante, transplantados e seus familiares.
“Temos um projeto muito ativo voltado para a saúde renal, em que a gente leva a ação para as cidades, escolas e empresas mostrando a importância de se cuidar dos rins. Fazemos aferimento de pressão, teste de glicemia, e às vezes, uma nutricionista também participa para explicar como a alimentação influencia no funcionamento dos rins. Damos muitas palestras online, principalmente nas empresas. A nossa ideia é levar o tema para diferentes lugares e cenários. Hoje, já são mais de 10 mil pessoas impactadas pelos conteúdos, ações, eventos e campanhas promovidas pelo Instituto Deixe Vivo,” enfatiza a idealizadora.
A história de Giovanna se parece um pouco com a de Maria Lúcia Kruel Elbern, 75. No início de 1999, o filho dela, na época com 15 anos, recebeu o diagnóstico de que os rins dele não operavam mais de forma satisfatória, e que por isso, precisaria entrar na lista de transplante. A mãe conta que ficou desesperada porque não havia nenhum doador compatível na família. Então, conversando com parentes, amigos e médicos, Lúcia, como é mais comumente chamada, teve a ideia de criar um projeto para divulgar informações sobre a doação de órgãos.
“Então, me juntei a outras pessoas que também tinham familiares em situação semelhante, e começamos a fazer esse trabalho em Porto Alegre (RS), nos shopping, nos semáforos, nas feiras, onde desse a gente ia entregar o material informativo. Aí, apareceu a oportunidade de criarmos uma organização - a ViaVida. No final de 1999, já éramos 23 voluntários que lutavam por essa causa. Me lembro que em nosso primeiro ano de atuação aqui no Rio Grande do Sul, nós conseguimos um aumento de 30% no número de doadores,” destaca a psicanalista e idealizadora da ViaVida.
Um ano depois de entrar na lista de espera por um transplante, o filho de Lúcia teve uma nova chance de vida. Mas, ela não parou com o projeto, pelo contrário, seguiu trabalhando ao lado de outras pessoas para expandi-lo. Por meio de convênios com universidades e outros parceiros, o instituto recruta pessoas que queiram abraçar a causa. Atualmente, são cerca de 75 voluntários envolvidos em ações educacionais, assistenciais e de sustentabilidade.
“Temos um grupo que trabalha, desde 2015, com contação de história para alunos do ensino fundamental. Fazemos uma apresentação lúdica para as crianças por meio do livro lançado pela ViaVida, que se chama “A tartaruguinha que perdeu o casco”. Em seguida, falamos com elas sobre doação e solidariedade. Em datas, como por exemplo no Dia do Rim, - celebrado na segunda quinta-feira do mês de março - a gente faz uma ação no Parque Farroupilha - ponto tradicional de Porto Alegre, distribuindo informações para a população,” explica Lúcia.
Outra extensão importante da entidade é a Pousada Solidariedade, que oferece assistência e hospedagem aos pacientes antes e depois de receberem o novo órgão. Porto Alegre é um dos grandes centros de referência de transplantes do Brasil, por isso acolhe pessoas que vão realizar os procedimentos, vindas de várias partes do país. “A gente possibilita atendimento gratuito, alimentação básica e serviços de apoio, como psicológico e pedagógico. E para os pacientes de baixa renda, que residem aqui na capital gaúcha, oferecemos uma cesta básica mensal,” finaliza a idealizadora.
Criada em 2017, a Associação Brasileira de Transplantados (ABTx) atua na conscientização sobre a doação de órgãos, em projetos de incentivo à atividade física entre pessoas transplantadas e na garantia dos direitos desse grupo. A organização também luta por políticas públicas que tragam mais segurança para quem recebeu um novo órgão. Em 2018, a associação ganhou maior representatividade quando houve uma grande falta de medicamentos para os transplantados no Brasil. Atualmente, são cerca de 7 mil pessoas cadastradas na ABTx.
“A voz do paciente é muito importante. Não adianta você prolongar a vida do transplantado e não oferecer a possibilidade de reinserção social, no mercado de trabalho, ou ainda de não dar a ele a chance de ter uma qualidade de saúde, preconizada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), como o bem-estar físico, psíquico e biossocial. Então, não é mais só tentar fazer com que o paciente viva mais, mas fazê-lo viver da melhor maneira possível. É nesse contexto que ABTx se insere,” destaca o presidente da associação, Edson Arakaki.
O pesquisador Carlos Alexandre Corsi, técnico do Banco de Tecidos Humanos do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (HC-FMRP), da Universidade de São Paulo (USP), trabalha há sete anos com doação de tecidos. Parte de sua atuação é triar os potenciais doadores e fazer a captação de córnea, ossos, pele, tendão, dentre outros. Em seguida, processar os tecidos e encaminhá-los ao centro de saúde. Mas, para Carlos, uma das veias principais das propostas de extensão do HC-FMRP é a ação educacional sobre a doação.
“A gente tem aqui um projeto que se chama “Conscientizar para doar”, em que trazemos alunos, principalmente de escolas públicas e técnicas, para dentro do banco de tecidos. Eles têm uma aula sobre doação de órgãos e tecidos e depois conhecem a estrutura do banco. Mostramos como tudo é processado e os estudantes saem maravilhados daqui. Eu também faço parte de uma organização chamada “Sou Doador”, na qual trabalhamos tanto a parte educacional quanto propostas de legislação e campanhas nacionais. Inclusive, recentemente tivemos a aprovação da Lei Tatiane,” evidencia Corsi.
Investir na área educacional é o caminho apontado pelo pesquisador para tentar mudar a cultura doadora no Brasil. “O público adolescente-jovem é propagador natural de causas que acredita. Então, quando eles saem impactados daqui do banco de tecidos, a gente sabe que vão falar lá fora sobre o assunto. Alguns nos procuram para contar que começaram a desenvolver projetos a partir da visita. Por isso, acredito muito que esse grupo pode transformar a sociedade, porque sem essa conscientização, a nossa realidade pode nunca mudar,” finaliza.